quinta-feira, 17 de outubro de 2013

PECADOS DE IGNORÂNCIA, DE DEBILIDADE E DE MALÍCIA

Padre Garrigou-Lagrange
Les Trois Ages de la Vie Interieur
Tradução: Rafael Horta

PECADOS DE IGNORÂNCIA

Com relação à vontade, a ignorância pode ser antecedente, conseguinte ou concomitante. A ignorância antecedente é aquela que não é de nenhuma forma voluntária e se chama “moralmente invencível” Por exemplo: crendo atirar contra um leão, em uma espessa selva, um caçador mata um homem, cuja a presença não podia suspeitar. Neste caso não há pecado voluntário, senão unicamente material.

A ignorância conseguinte é aquela que é voluntária, ao menos indiretamente, pela negligência que existiu em inteirar-se do que podia e deveria saber; se chama ignorância vencível, porque teria sido possível livrar-se dela; assim é causa de pecado formal, indiretamente voluntário. Por exemplo: um estudante de medicina, depois de vários anos de muito vagabundar e estudar pouco, por influência ou casualidade recebe seu diploma de doutor; como ignora quase tudo pertinente à arte da medicina, um dia acontece que acelera a morte de um enfermo, em vez de curá-lo. Não há, neste caso, pecado diretamente voluntário, porém indiretamente e que pode ser grave, já que é possível chegar ao homicídio por imprudência ou grave negligencia.

A ignorância concomitante é aquela que não é voluntária, porém de tal forma acompanha o pecado, que mesmo que se não existisse se pecaria do mesmo modo. É o caso, por exemplo, de um homem vingativo que deseja matar seu inimigo, e um dia o mata sem saber, crendo ter matado uma cabra na espessura do bosque; caso que manifestamente se difere dos dois anteriores.

Se segue daí que a ignorância involuntária ou invencível não é pecado; mas a voluntária e vencível o é, e mais ou menos grave segundo a gravidade das obrigações às que se falta. Tal ignorância não livra do pecado, porque houve negligência; unicamente diminui a culpabilidade. A ignorância involuntária ou invencível, em contrapartida, escusa totalmente do pecado, suprime a culpabilidade.

A concomitante não livra do pecado, porque mesmo se não existisse, se cometeria o mesmo pecado.

A ignorância invencível se designa com o nome de “boa fé”; para que realmente se possa chamar invencível ou involuntária, é preciso que moralmente não seja possível livrar-se dela. Não é possível tal ignorância enquanto aos mais fundamentais preceitos da lei natural: “se deve fazer o bem e evitar o mal”; “não faça aos outros o que não quer que te façam”; “não matarás”; “não roubarás”; “adorarás a um só Deus”. Mesmo que não seja pela ordem do mundo, pela vista do céu estrelado e o conjunto da criação, a mente humana possui, ao menos, a probabilidade da existência de Deus, ordenador e legislador supremo; e quando o homem chega a essa probabilidade, está na obrigação estrita de ir mais adiante nessa investigação; do contrário já não se mantém na boa fé verdadeira, ou ignorância involuntária ou invencível. O mesmo se pode dizer de um protestante que chega a convicção de que provavelmente o catolicismo é a verdadeira religião; tem obrigação de informar-se com seriedade e pedir a luz a Deus Nosso Senhor; do contrário, como disse Santo Afonso, comete pecado contra a fé, ao negar-se empregar os meios necessários para chegar a ela.

Com frequência as pessoas piedosas não consideram suficientemente os pecados de ignorância que muitas vezes cometem, por não considerar, como poderiam e como seria sua obrigação, os deveres religiosos ou os deveres de estado; ou também os direitos e qualidades dos demais; superiores, iguais ou inferiores com quem tem que tratar. Porque somos responsáveis, não somente dos atos desordenados que realizamos, mas também das omissões do bem que poderíamos ter feito se tivéssemos verdadeiro zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas. Uma das causas dos males atuais da sociedade está no esquecimento daquelas palavras do Evangelho: “Os pobres são evangelizados”, e na indiferença dos que, possuindo coisas supérfluas, não se preocupam com os que nada têm.

PECADOS DE DEBILIDADE

Chama-se pecado por debilidade ou fraqueza o que provém de uma violenta paixão que arrasta a vontade ao consentimento. Assim se diz no Salmo VI, 3: “Miserere mei, Domine, quaniam infirmus sum: Tende piedade de mim, Senhor, porque sou fraco.” A alma espiritual é débil, com efeito, quando sua vontade cede à violência dos movimentos da sensibilidade. Perde assim a retidão do juízo prático e da eleição voluntária ou de eleição, seja por medo, ira ou qualquer outra má inclinação. Pedro, durante a Paixão, renegou cheio de medo, três vezes a Nosso Senhor.

Quando, por efeito de uma viva emoção ou paixão, nos sentimos inclinados a um objeto qualquer, logo julga a inteligência que tal objeto nos convém, e a vontade dá com facilidade seu consentimento, desprezando a lei divina(1).

Mas temos que distinguir aqui a paixão chamada antecedente, que precede o consentimento da vontade, e aconseguinte, que a segue. A paixão antecedente diminui a culpabilidade, porque diminui igualmente a liberdade do juízo e da livre eleição; isto se acha especialmente nas pessoas muito impressionáveis. Pelo contrário, a paixão conseguinte, ou voluntária não diminui a gravidade do pecado, antes a aumenta; ou melhor, é uma prova que o pecado é muito voluntário, posto que é a mesma vontade que que suscita esse desordenado movimento da paixão, como quando alguém se encoleriza para fazer ver sua má vontade(2). De igual forma uma boa paixão conseguinte, como a Santa cólera de Nosso Senhor, ao expulsar do Templo os vendedores, aumenta o mérito, uma má paixão conseguinte aumenta o pecado.

O pecado da fraqueza é o da vontade que cede ao impulso de uma paixão antecedente; sua gravidade diminui, porém isso não quer dizer que nunca possa chegar a ser mortal. O é certamente quando a matéria é grave e vai unida a um conhecimento e consentimento pleno; tal seria o caso do homicida que comete o crime sob impulso da ira(3).

É possível resistir, sobretudo no princípio, aos movimentos desordenados das paixões; se se não lhe opõe essa resistência, nem se reza como é devido, para obter o auxílio divino, a paixão já não é só antecedente, mas se faz também voluntária.

O pecado de fraqueza, mesmo sendo mortal, é mais digno de perdão que qualquer outro; porém “digno de perdão” de nenhuma maneira quer dizer “venial” no sentido corrente desta palavra(4).

Mesmo as pessoas piedosas devem ter muita atenção neste assunto, porque podem produzir-se nelas movimentos de inveja não reprimidos que poderia fazer cair em graves faltas; por exemplo, em juízos temerários, palavras e atos externos que foram causa de graves divisões, contrárias ao mesmo tempo à justiça e à caridade.

Seria grave erro pensar que só o pecado de malícia pode chegar a ser mortal, porque só ele contraria com a suficiente advertência e o pleno consentimento  requeridos, junto com a matéria grave, para constituir o pecado que dá morte a alma e a faz merecedora da morte eterna. Semelhante erro seria o resultado de uma profunda deformação da consciência, e ainda contribuiria a aumentá-la. Recordemos que no princípio é fácil resistir aos desordenados movimentos da paixão e que devemos opor-lhes resistência e orar para faze-lo assim, segundo as palavras de Santo Agostinho recordadas pelo Concílio de Trento: “Deus nunca nos manda o impossível, porém, ao impor-nos um preceito, nos ordena que façamos o que podemos e que peçamos o que não podemos” (5).

PECADOS DE MALÍCIA

Diferente do pecado de ignorância e de fraqueza, o de malícia é aquele que se escolhe o mal intencionalmente; os latinos diziam “de indústria”, ou seja, com intenção, expressamente, sem ignorância e mesmo sem paixão antecedente. Muitas vezes este pecado é premeditado.

Isso não quer dizes que se queira o mal pelo mal; porque o objeto da vontade é o bem e não pode querer o mal senão sob aspecto de um bem aparente.

Mas o que peca por malícia, com conhecimento de causa e por má vontade, deseja intencionalmente um mal espiritual (por exemplo, a perda da caridade ou da divina amizade) em troca de um bem temporal. É claro que um pecado assim entendido difere, em gravidade, do de ignorância e do de fraqueza ou debilidade.

Não se deve concluir daí que todo pecado de malícia seja pecado contra o Espírito Santo. Este, que é um dos pecados mais graves de malícia, tem lugar quando, por menosprezo se rechaça precisamente aquilo que nos salvaria ou que nos livraria do mal; por exemplo; quando se combate a verdade religiosa conhecida (impugnatio Veritatis agnitae), ou quando por inveja, deliberadamente, se entristece com as graças e do adiantamento espiritual do próximo.

Frequentemente o pecado de malícia procede de algum vício gerado por múltiplas faltas; mas também pode existir faltando este vício; assim o primeiro pecado do Demônio foi um pecado de malícia, porém não habitual, senão de malícia atual, de má vontade, de uma embriaguez de orgulho.

É evidente que o pecado de malícia é mais grave que os de ignorância e de fraqueza, mesmo que estes sejam mortais. Por isso, mesmo as leis humanas castigam com mais rigor o homicídio premeditado que o cometido por paixão.

A principal gravidade dos pecados de malícia provém de que não mais voluntários que os outros; de que geralmente procedem de um vício gerado por faltas reiteradas, e de que, ao comete-los, se antepõe um bem temporal à divina amizade, sem a desculpa de ignorância ou de violenta paixão.

Nestas questões alguém pode se enganar de duas maneiras distintas. Alguns se inclinariam a pensar que só o pecado de malícia pode ser mortal; estes não compreendem bem a gravidade de certos pecados de ignorância voluntária ou de que fraqueza, nos que, não obstante, existe matéria grave, suficiente advertência e consentimento pleno.

Outros, pelo contrário, não compreendem suficientemente a gravidade de certos pecados de malícia cometidos com toda a frieza. Com afetada moderação e gesto de benevolência e tolerância, os que assim combatem a verdadeira religião e tiram aos pequenos o pão da verdade divina podem pecar mais gravemente que o que blasfema e o que mata no ardor da paixão.

A falta é tanto mais grave quanto é cometida com mais vontade e mais conhecimento, e quando procede de mais desordenado amor de si mesmo, que às vezes chega até o desprezo de Deus.

Pelo contrário, um ato virtuoso é mais ou menos meritório segundo seja mais voluntário e livre e que seja inspirado pelo maior amor de Deus e do próximo, amor que pode chegar até o santo desprezo de si mesmo, como disse Santo Agostinho.

Assim acontece que o que ora com demasiado apego ao consolos sensíveis, merece menos que quem persevera na oração sem esses consolos, em contínua e profunda aridez; mas ao sair dessa prova, seu mérito não desmerece se sua oração procede de uma caridade igual, que agora influi felizmente em sua sensibilidade. Ademais, um ato interior de puro amor tem mais valor aos olhos de Deus que uma multidão de obras exteriores inspiradas em menor caridade fervorosa.

Em todas estas questões, quer se trate do bem quer do mal, preciso é, sobretudo, atender ao elemento que radica em nossas faculdades superiores: inteligência e vontade, ou seja, o ato de vontade realizado com pleno conhecimento de causa. E desde este ponto de vista, assim como um ato mal plenamente deliberado e consentido, como um pacto formal com o Demônio, tem formidáveis consequências, do mesmo modo um ato bom, tal como a oblação de si mesmo a Deus, realizada de maneira plenamente deliberada, consentida e frequentemente renovada, pode ter ainda maiores consequências na ordem do bem; porque o Espírito Santo é infinitamente mais poderoso que o espírito do mal, e pode mais na ordem de nossa santificação, que aquele para nossa perdição. É muito conveniente pensar nestas coisas diante da gravidade de certos acontecimentos atuais. Como o amor de Jesus Cristo, ao morrer por nós na Cruz, foi mais agradável a Deus que o tudo o que poderia desagradá-Lo todos os pecados juntos, assim o Salvador é mais poderoso para salvar-nos, que o inimigo do em para perder-nos. Neste sentido disse Jesus: “Não temais aquele que matam o corpo, porém não podem matar a alma; antes, temei ao que pode perder o corpo e a alma no inferno”. (Mt X, 28). O inimigo do bem não pode, ao menos que nós o abramos as portas de nosso coração, penetrar no intimo de nossas vontades, enquanto que Deus está dentro de nós mais intimamente que nós mesmos, e pode levar-nos com força e suavidade aos mais profundos e elevados atos livres, aqueles atos que são como uma “prévia” da vida eterna.

Notas:
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1 – Santo Tomás, I, II, q. 58, a. 5; q. 57, a. 5, ad 3; q 77, a. 2.
2 – Santo Tomás, I, II, q. 77, a. 6.
3 – I, II, q. 77, a. 8.
4 – Ibid., ad I.
5 – Conc. Trid., ses. VI, cap. II (Denz., 804), ex Santo Agostinho, De Natura et gratia, C. XLII, n° 50.

Nos Corações de Jesus e de Maria!
Rafael Horta