domingo, 15 de setembro de 2013

TRATADO DO DESÂNIMO - Parte XIV

Nota do blogue: Acompanhar esse especial AQUI.

TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952


FALSA E FUNESTA PERSUASÃO DE QUE NÃO DEPENDE DE NÓS COMBATER CERTAS INCLINAÇÕES NEM RESISTIR A CERTOS HÁBITOS.

Uma astúcia de que o demônio se serve para lançar uma pessoa no desânimo e para retê-la nele, é persuadir-lhe que cer­tas inclinações, certos hábitos são tão for­tes nela, que não depende dela resistir-lhes. Se alguém lhe propuser meios para se corrigir, ela experimentará tanta repug­nância a isso, que vos dirá ser inútil apli­car-se a isso, porque isso não depende dela: que ela não pode tomar isso a seu cargo. Nesta disposição, se Deus lhe dá algumas luzes, alguns bons sentimentos, ela os torna inúteis, ou pela sua desatenção, ou pela sua resistência.

Eis aí o pretexto. A verdade, porém, é que ela não quer fazer violência a si mes­ma para se corrigir. Nunca o pede a Deus com verdadeiro desejo de obtê-lo. Nunca emprega, remontando à causa, os verda­deiros meios que a razão, de acordo com a Religião, lhe faz conhecer para se re­formar. Acredita acalmar a sua consciência persuadindo-se de que a coisa não depende dela; segue assim a sua inclina­ção numa segurança bem prejudicial à sua alma. Às vezes, espantada com o seu procedimento, tomará essa pessoa algumas resoluções para voltar a Deus; mas, por isso que não vai até à fonte do mal, e por querer sempre viver sem incômodo, ela logo se cansa do penoso combate que tem de sustentar contra uma inclinação que a solicita incessantemente, e, na pri­meira queda, volta à sua idéia de que a coisa não está em seu poder; o desânimo volta a dominar, e ela abandona até o desejo de combater, de se corrigir.

Esta tentação é perigosíssima: leva ao esquecimento de Deus e da própria salvação. Na disposição de não se constran­ger, a alma entrega-se à dissipação do espírito e do coração, para não ser presa dos remorsos, para apagar as luzes que Deus lhe dá por misericórdia, e que per­turbam a falsa paz que ela ama.

O grande mal desse estado é que a al­ma infiel não ousa pedir mais nada a Deus para a sua mudança, como se Deus não fosse sempre para ela o Deus de misericórdia e de bondade, que quer a sal­vação dela muito mais do que a quer ela mesma; como se Ele não fosse sempre o Deus forte e onipotente, que pode sempre ampará-la e defendê-la; o Deus fiel às suas promessas, que assegurou o seu socorro à nossa confiança. Pelo esquecimen­to destas verdades, essa alma afasta-se da oração. Se for obrigada a achar-se nesta pela disposição do seu coração, a ela vai na persuasão de que se desobrigará mal dela, o que a impede de para ela se pre­parar pelo recolhimento e pela confiança: assim, por culpa sua, torna inútil a oração.

É de admirar que uma pessoa instruída da sua religião caia em semelhante armadilha. Essa religião santa ensina-nos que Deus nunca pode ordenar-nos coisas que se nos tornem impossíveis, nem pu­nir-nos, como por um pecado mortal, por aquilo que não depende de nós. Deus orde­na, é verdade, coisas perfeitas, acima das forças da natureza; porém coisas que tan­tos outros praticaram antes de nós, que tantos outros praticam ainda, pelo socor­ro da graça. Ele promete ajudar-nos, co­mo ajudou os outros, se, como eles, o in­vocarmos com confiança; se, como eles, adotarmos os meios aos quais eles liga­ram o êxito e a vitória. Diz S. Agostinho: “Por que não haveríeis de fazer o que tan­tos outros puderam? por que não haveríeis de fazer o que tantos outros fizeram, o que ainda fazem tantos outros que não têm hoje outros socorros a não ser os que Deus vos apresenta?” — “Fazei o que pu­derdes, — diz noutro lugar esse santo Doutor, — e pedi aquilo que não puder­des, a fim de o poderdes”.

É, pois, contra os princípios da religião pensar que não depende de vós o ven­cer-vos com o socorro da graça que vos foi prometida, se a pedirdes com confian­ça, e pelo emprego dos meios que a Pro­vidência vos fez conhecer.

Dizeis que empregais esses meios; mas o que vos desconcerta é parecer-vos que, apesar dos vossos cuidados, não estais mais adiantada. Após vários dias de aplicação, de esforços e de combates, sentis a mesma inclinação quase com a mesma força. Deve isso surpreender-vos? Será que nos desfazemos em alguns dias de uma inclinação natural ou de um hábito que por nossa negligência deixamos fortificar- se? Aliás, não deveis julgar do progresso que a graça vos leva a fazerdes pela per­severança ou pela diminuição da inclina­ção de que quereis corrigir-vos, mas sim pelo império que adquiris sobre ela, para evitar as faltas em que ela vos faz cair. Embora persevere, essa inclinação não é um pecado. É o exercício da virtude: quando se lhe resiste, merece-se o Céu.

Mas ninguém ignora que quanto mais forte é a inclinação, quanto mais anti­go o hábito, tanto mais atenção, vigilân­cia se deve também ter sobre si mes­mo para combatê-lo, e que nenhum meio se deve desprezar para isso. Por que razão aquilo que dependia de vós ontem não mais depende hoje? A razão não é difícil de achar. É que ontem, ocupada de Deus, animada pelo desejo de lhe agra­dar, fazíeis violência para vos comportar­des segundo o espírito de Deus, empregan­do os meios que a Sua Providência estabe­leceu, e aos quais Ele liga as Suas graças. Hoje, cansada de combater, vos esqueceis de Deus, saís da ordem da Providência, para seguirdes a vossa preguiça. É a vos­sa negligência que vos põe na alma essas diferentes disposições. Voltai ao primeiro estado, e vos sustentareis na prática das virtudes.

Enfim, ainda quando levásseis algumas quedas, deveríeis por isso desanimar e tudo abandonar? Seria querer perder todo o seu bem porque se perdeu uma pequena parte: coisa que toda gente trataria de loucura, no uso dos bens temporais. Essas quedas fazem-vos conhecer a vossa fraqueza: se pensardes sensata e cristãmente, devem elas empenhar-vos em re­parar o mais depressa possível o dano que delas recebestes, em premunir-vos contra o dano que ainda poderíeis receber, para isso redobrando de confiança, de orações, de vigilância, de atenção a evitar as oca­siões. É contra os princípios da própria razão vos determinardes a cometer cem pecados, abandonando os meios que po­dem fazer evitá-los, pela razão de haver­des cometido um, que, reparado por um sincero pesar, já não pode opor óbice à vossa santificação.

O que impede de saborearmos esta ins­trução, embora não nos possamos disfar­çar que ela é fundada em princípios que não podemos desconhecer, é que muitas vezes concebemos um despeito secreto da nossa fraqueza, despeito que nos lança numa tristeza de amor-próprio; não pode­mos sofrer a visão dessa fraqueza humilhante. Só a dissipação pode afastar dos objetos desagradáveis que queremos ocul­tar a nós mesmos: então nos entregamos a ela inteiramente. O despeito, após uma queda, é uma tentação perigosa; deveis sempre resistir-lhe, e corrigi-lo pela hu­milde confissão que a Deus fazeis da vossa falta. A tristeza pode ser um bom movi­mento, e pelos seus efeitos a conhecereis. A que vem de Deus é sempre humilde, doce e tranquila; ocupa-se dos meios de reparar a falta cometida, e de voltar o mais cedo possível a Deus. Se tem efei­tos opostos a estes, se é acompanhada de perturbação, de inquietação, de afasta­mento de Deus e dos exercícios da piedade, certamente vem da tentação, do desâni­mo; não a escuteis. Reconduzi a Deus com confiança a vossa mente e o vosso coração. A ordem, a paz logo se restabe­lecerão na vossa alma. Deus não habita na perturbação: aí nunca o achamos.