terça-feira, 27 de agosto de 2013

A amplitude de nossa vontade e seu Fim último



O Homem e a Eternidade
Pe. Garrigou-Lagrange 

     Se São Tomás diz que em certos homens - o avarento, a exemplo - a concupiscência das riquezas é infinita (1), que dizer então do desejo da vontade espiritual? Quanto mais elevado for o conhecimento dos bens espirituais superiores e do bem supremo, mais aumentará este desejo espiritual; e a fé cristã diz-nos que só Deus visto face a face a pode encher. Portanto, a nossa vontade, em certo sentido, é verdadeiramente de uma grandeza sem limites.
   Por isso a bem-aventurança ou verdadeira felicidade, que o homem já deseja naturalmente não pode encontrar-se em nenhum bem limitado ou restrito, mas unicamente em Deus, conhecido pelo menos naturalmente e amado efetivamente acima de tudo. São Tomás (2) demonstra que a beatitude do homem, pelo facto de este conceber o bem universal, não pode consistir nas riquezas, nem nas honras, nem na glória, nem no poder, nem em qualquer outro bem do corpo ou bem infinito, da alma, como a virtude, nem em nenhum bem limitado. E o argumento com que prova a sua afirmação baseia-se na própria natureza da nossa inteligência e da nossa vontade (3). Quando julgamos ter encontrado a felicidade no conhecimento duma ciência ou na amizade duma pessoa nobre, depressa nos apercebemos de que é um bem limitado, o que fazia dizer a Santa Catarina de Sena: «Se quiserdes que uma amizade dure, se quiserdes saciar-vos por muito tempo com este copo, deixai que ele se encha sempre na fonte de água viva; doutro modo, ele deixará de poder corresponder à vossa sede».
      Com efeito, é impossível que o homem encontre a verdadeira felicidade, que deseja naturalmente, em qualquer bem limitado, porque a sua inteligência, verificando imediatamente o limite, concebe um bem superior e, naturalmente, esse bem é desejado pela vontade.
      Se nos fosse concedido ver um anjo, vê-lo imediatamente, na sua beleza supra-sensível, puramente espiritual, a principio ficaríamos maravilhados; mas a nossa inteligência, que concebe o bem universal, não tardaria a dizer-nos: isto ainda não passa de um bem finito e, portanto, muito pobre em comparação com o Bem por essência, sem limites e sem mistura de imperfeição.
      Mesmo a soma de todos os bens finitos, misturados com imperfeição, nunca pode constituir o Bem por essência que concebemos e desejamos, assim como uma multidão inumerável de idiotas jamais pode equiparar-se a um homem de gênio.
      Na esteira de São Gregório Magno, São Tomás notou a este respeito: os bens espirituais são apetecíveis quando não se possuem; mas, quando se possuem, vê-se a sua pobreza que não pode corresponder ao nosso desejo, e daí a desilusão, o tédio e por vezes o desgosto. Com os bens espirituais sucede o contrário: não são desejados por aqueles que não os possuem e desejam sobretudo os bens sensíveis; mas, quanto mais se possuem mais se conhece o seu valor e mais se amam (4). Pela mesma razão, enquanto os mesmos bens materiais (a mesma casa e o mesmo, campo) não podem pertencer simultânea e integralmente a várias pessoas, os mesmos bens espirituais (a mesma verdade, a mesma virtude) podem pertencer simultânea e plenamente a todos; cada um possui-os tanto mais quanto mais os comunica aos outros (5). Isto é verdade, sobretudo, tratando-se do Bem Supremo.
      É forçoso que exista este Bem infinito, o único que corresponde à nossa aspiração; doutro modo, a amplitude universal da nossa vontade seria um absurdo psicológico, uma coisa radicalmente ininteligível, sem razão de ser.
      Se Deus nos tivesse criado num estado puramente natural, sem a graça, o nosso fim último seria conhecê-lo naturalmente pelo reflexo das suas perfeições nas criaturas e amá-lo efetivamente acima de tudo.
      Mas, gratuitamente, ele chama-nos a conhecê-lo duma forma sobrenatural, pela visão imediata da sua divina essência, a conhecê-lo como Ele se conhece e a amá-lo sobrenaturalmente como Ele se ama, por toda a eternidade. Na outra vida sentiremos que só Deus, visto face a face, pode preencher o profundo vazio do nosso coração, que só Ele pode preencher as profundezas da nossa vontade.
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1. I, II q. 30, a. 4.
2. I, 11 q. 2, a. 8.
3. l, lI, q. 2, a. 8: «É impossível que a bem-aventurança do homem consista em qualquer bem criado. Com efeito, a bem-aventurança é um bem perfeito, que satisfaz totalmente o apetite; doutro modo, não seria o fim último, uma vez que ainda restava alguma coisa apetecível. Porém, o objecto da vontade que é o apetite, é o bem universal, assim como o objecto da inteligência é a verdade universal. Estamos, pois, a ver que nada pode satisfazer a vontade do homem a não ser o bem universal. E este não se encontra em nenhum bem criado, mas somente em Deus, porque a bondade de toda a criatura é particular. Conclui-se, pois, que só Deus pode satisfazer a vontade humana.».
4. I, lI, q. 31, a. 5; q. 32"a.2; q. 33, a. 2.
5. II, q., 28, a. 4, 2 m;llI, q. 23, a. I, ad. 3.