terça-feira, 11 de junho de 2013

Dos verdadeiros sinais de progresso na Vida Espiritual

Nota do blogue: Agradeço ao amigo e leitor Fabrício pelo envio do texto. Deus lhe pague. Grifos meus.


Padre Frederico William Faber, 
Progresso na Vida Espiritual, Londres, 1854, Ed. Vozes, p.11-20

A vida espiritual é toda de contradições; isto, em outras palavras, quer dizer que a natureza humana é uma natureza decaída. Uma das maiores contradições, e talvez das mais difíceis de manejar, é a seguinte: na espiritualidade é importantíssimo termos um profundo conhecimento de nós mesmos e, ao mesmo tempo, pensarmos muito pouco em nossa pessoa, o que não é muito fácil de conciliar. Menciono esta dificuldade, de início, porquanto, no correr deste tratado, teremos de olhar muito para nós mesmos, e, consequentemente, corrermos risco de pensar também muito em nós; e disto poderia advir maior mal, do que, daquilo bem.

Nenhum conhecimento nos pode ser mais útil que saber a situação em que estamos perante Deus. Tudo depende disso. É para nós a ciência das ciências, mais do que a ciência do bem e do mal que tentou tão violentamente Adão e Eva. Se estamos bem com Deus, tudo está bem conosco, ainda que as mais negras adversidades nos cerquem. Se não estamos bem com ele, nada está bem conosco, esteja embora aos nossos pés o que o mundo possui de melhor e de mais brilhante. É natural que desejemos saber se progredimos na vida espiritual, nada havendo de mal, nem sequer de imperfeito neste desejo, conquanto não seja demasiado. Ser-nos-ia imensa consolação termos razões para supor que adiantamos. Se, pelo contrário, tivermos motivos para crer que haja algo de errado, pelo menos nos será uma segurança e uma garantia ver que não continuamos nas trevas numa matéria que nos toca mais de perto que qualquer outra. O amor gosta de saber se é aceito e retribuído e, sendo Deus o seu objeto, se não é rejeitado como merece ser. O temor deseja esse mesmo conhecimento, por causa dos interesses eternos que estão em jogo.
Não podemos, no entanto, por mais que o desejemos, ter completo conhecimento do nosso progresso na vida espiritual, e isto tanto pelas razões que pertencem a Deus, como pelas nossas. Quanto a Deus, ele gosta de ocultar os seus desígnios. Quanto a nós, o amor próprio exagera o pouco que fazemos. Nem sabemos, com certeza, se estamos em estado de graça, ou, como diz a Escritura, se merecemos amor ou ódio. Asilamos no coração uma quantidade de pecados secretos, e como nos admoesta o inspirado Escritor, não devemos estar sem receio, mesmo quanto ao pecado perdoado.
Há meios errôneos de adquirir este conhecimento, que o coração impaciente e ansioso procura. Todo desejo que não for rigorosamente disciplinado e firmemente subjugado, torna-se, com o tempo, exagerado e desregrado e então sabe encontrar, com astúcia fatal, os meios mais funestos de satisfazer-se a si próprio. Um desses meios errôneos é importunar os diretores para saber qual a opinião que tem a nosso respeito. Isto lhes repugna, porque não querem parecer que tem dons sobrenaturais, como é o discernimento dos espíritos, e porque sabem que esse conhecimento raras vezes é para nosso bem.
E, quando esse artifício resulta sem êxito, procuramos nós mesmos sinais arbitrários e artificiais, quais crianças que fincam paus na areia para marcar o fluxo e refluxo da maré. Erramos na escolha, como era de esperar, e nem tínhamos direito de escolher. Erramos, mas teimamos, como é humano, e tanto mais erramos, mais teimamos.
Assim, o resultado final é a ilusão. Ainda quando não procuramos conhecer o nosso estado interior por um desses meios falsos, fazemos o que é igualmente incorreto, afligindo-nos constantemente sobre o assunto, o que nos expõe a perdermos bênçãos e graças a quase toda hora do dia.
Em verdade, com o nosso progresso na graça dá-se o mesmo do que com a hora da nossa morte, por não ser de modo algum para nosso bem termos conhecimento claro e exato de um ou de outro.
Já é bem difícil conservarmo-nos humildes, mesmo quando os defeitos se manifestam claros e visíveis, e o pouco bem que há em nós seja quase imperceptível. Que seria então se estivéssemos de fato crescendo em graça e dando passos largos no amor de Deus? De certo, quanto menos soubermos deste progresso, tanto mais fácil será conservarmos a humildade. Ademais, a ausência desse conhecimento torna-nos mais dóceis e obedientes, tanto às inspirações do Espírito Santo, como aos conselhos dos diretores espirituais, pois, assim como a ignorância dos seus males torna os doentes submissos para com o médico, assim também sucede na vida espiritual em relação a ignorância a respeito do nosso progresso. E quanto é necessária a esse progresso a dupla obediência às inspirações e à direção!
Essa incerteza, em si, é um perpétuo estímulo de maior generosidade para com Deus. O grande inconveniente, pois, duma excessiva introspecção é que os nossos olhos exageram o que há em nós de bom.
Quem conserva o olhar sempre fito no coração, tem uma esquisita e exagerada noção do que faz por Deus. E é justamente a desproporção entre a grandeza do que Deus fez por nós, e do espírito de amor paternal com que o faz, e a significância do que nós fazemos por Deus e o espírito de mesquinhez com que o fazemos, que nos leva a desejar com ânsia amá-lo mais e trabalhar com maior abnegação por ele. Daí concluo que não seria em nosso proveito saber certa e exatamente quão adiantados estamos no caminho da perfeição.
Um certo conhecimento do nosso estado é, todavia, possível, desejável e mesmo necessário, enquanto for desejado com moderação e procurado com reta intenção. Carecemos de consolo em tão difícil e duvidosa batalha, e não estamos ainda suficientemente especial no conhecimento claro das operações de graça em nossas almas. Não podemos ser muito dados à oração, sem termos algum conhecimento do proceder de Deus para conosco; e, na verdade, se não soubermos quais as graças que Deus nos dá, não lhes poderemos corresponder. Assim, certa soma de conhecimentos é-nos absolutamente necessária para continuarmos a luta dos cristãos, e os meios lícitos de adquiri-los são a oração, o exame de consciência e as admoestações espontâneas do diretor espiritual.
Sobre o conhecimento do nosso próprio estado espiritual, basta repetir o que já foi dito. É assunto árduo e arriscado. O menor conhecimento que nos possa satisfazer é o bastante, porque é muito difícil procurá-lo com retidão e usá-lo com moderação. Não podemos, porém, dispensá-lo de todo, ainda que sua importância varie segundo a condição espiritual do indivíduo.
É importante, pois, termos uma noção clara no tocante à condição da vida espiritual em que atualmente nos encontramos. Quem se converte, quem torna a Deus, e começa vida nova, faz penitência dos pecados e abjura as falsas máximas que até então observara; sente-se outro para com Deus e Jesus Cristo; entrega-se a certas práticas de mortificação; obriga-se a certas observâncias religiosas; põe-se sob obediência de um diretor espiritual. Então sente os primeiro fervores, é ajudado pela prontidão sobrenatural em tudo o que se refere ao serviço de Deus, pela doçura sensível na oração, pela alegria na recepção dos sacramentos, por um gosto novo pela penitência e pela humildade, por uma facilidade para a meditação, e às vezes pela cessação total ou parcial das tentações. Esses primeiros fervores podem durar semanas, ou meses, ou um ano, ou mesmo dois, mas depois sua obra está feita. Correspondemos mais ou menos fielmente. Tais fervores tem seus característicos próprios, suas peculiaridades, seus sintomas, suas dificuldades. Tem um feitio particular, e necessitam de uma direção especial, que não conviria de outra forma. Agora já passaram e estão fora do nosso alcance. Encontrá-lo-emos de novo no diz do juízo, e não antes.
Mas onde nos deixaram eles? No começo de uma fase da vida espiritual, numa época muito penosa e crítica. O mero desaparecimento do fervor, que não foi senão um favor temporário, deixa-nos submersos num desagradável sentimento de tibieza. Os característicos desse estado atual levam-nos a crer que estamos mais abandonados a nós mesmos do que outrora. A graça parece que nos ajuda menos. O natural volta, quando o fervor que o dominava nos deixa, e vibra com vivacidade espantosa. Sentimos que o nosso apoio agora está no brio e na honestidade dos propósitos e da vontade; sentimo-nos menos protegidos pelos vários recursos da vida sobrenatural.
As orações tornam-se mais áridas. O terreno que cavamos é mais duro e pedregoso. O trabalho perde o encanto à medida que se torna mais penoso. A perfeição parece-nos menos fácil, e a penitência, insuportável. É chegado, então, o momento da coragem e da prova do nosso valor real. Começamos a viajar nas regiões centrais da vida espiritual, que são, na maior parte, regiões de deserto. É aqui que tantos voltam atrás, sendo rejeitados como santos malogrados e vocações inutilizadas. A alma a quem se dirige este livro já chegou a tal ponto, e caminha a custo, queimada pelo sol e vento, com lama até os tornozelos, desesperada pela escassez das nascentes d’agua, queixosa por falta de uma sombra quieta e fresca, e inclinada a parar e desistir da obra por julgá-la impossível.
Pelo amor de Deus, não vos entregueis ao desânimo, senão tudo está perdido. Mas direis: se soubesse pelo menos que estou avançando; se pudesse realmente crer que estou fazendo algum progresso, forçaria meus membros cansados a prosseguir! Dois valem mais que um, diz a Escritura; pois então vamos trabalhar juntos durante algum tempo, falando dos nossos obstáculos e dos meios que temos para superá-los. Não somos santos, bem o sabeis. Não aspiramos talvez à altura dos santos, e, portanto, não devemos tomar liberdades de santos. As nossas lições devem ser sóbrias, seguras e simples. Em todo o caso, não devemos nem voltar atrás, nem parar em meio caminho.
Estamos progredindo: infelizmente, no caminho celeste não há nem poço nem palmeira pelo qual possamos medir as distâncias; só há areia e horizonte. Coragem! Vou indicar-vos cinco sinais de progresso. Se tiverdes um, está bem; se dois, melhor; se três, melhor ainda; se quatro, ótimo; se todos os cinco, alegrai-vos sumamente.
1.      Estamos nós descontentes com o nosso estado atual, qualquer que seja, e anelamos algo de melhor e de mais elevado? Então temos razão para ser agradecidos a Deus, porque esse descontentamento é um dos seus melhores dons, e sinal evidente de que realmente estamos progredindo na vida espiritual. Mas devemos lembrar-nos que esse descontentamento deve ser de natureza a aumentar-nos a humildade, e não a causar inquietação de espírito ou desassossego nos exercícios espirituais. Deve consistir num desejo, um tanto impaciente, de adiantar na santidade, acompanhado de profunda gratidão pelas graças passadas e grande confiança nas futuras, e de um sentimento de viva indignação pelo número muito maior de graças recebidas do que correspondidas.
2.     Talvez pareça estranho, mas é sinal de progresso estarmos sempre a tentar novos esforços. O grande santo Antônio fazia a perfeição consistir nisto. Para pessoas, porém, que confundem novos esforços na vida devota com o incessante levantar e recair dos pecados habituais, parece, por ignorância, motivo de desânimo. Não devemos confundir esses esforços contínuos e sempre novos com a inconstância que tantas vezes leva à dissipação e nos retém no caminho do céu. Esses esforços visam coisa mais alta e, portanto, mais árdua, enquanto a inconstância está cansada do jugo e procura conforto e variedade. Nem tão pouco consistem esses esforços em mudar de livros espirituais, de penitências ou métodos de oração, muito menos de diretores. Consistem principalmente em duas coisas: primeiro, em renovar a intenção de querer a maior glória de Deus; e, segundo, em reanimar o fervor.
3.      É também sinal de progresso na vida espiritual o termos em vista algo de determinado, como seja envidar esforços para adquirir certa virtude, emendar certo defeito ou praticar certa penitência. Tudo isto é prova de diligência e também indício de vigor da graça em nós. Se não atacarmos um ponto particular da linha do inimigo, dificilmente será uma batalha. Se atirarmos sem alvo, só resultará barulho e fumaça. Não é provável que progredimos, se caminharmos a esmo, sem ter um fim claramente escolhido e sem empregar os devidos esforços e atividades para alcançá-lo, depois de o ter conscienciosamente escolhido.
4.      Mas é ainda maior sinal de progresso termos na alma a firme convicção de que Deus quer algo de nós em particular. Estamos certas vezes cientes de que o Espírito Santo nos está atraindo em uma direção de preferência a outra; de que ele deseja a remoção de certo defeito ou quer que nos encarreguemos de alguma obra pia.
Os escritores espirituais chamam a isto “atração”. Para alguns será uma atração perseverante que dura toda a vida. Para outros muda constantemente.  Para muitos é tão obscura que só a percebem de vez em quando; para outros, enfim parece não haver chamado especial (1). Quando essa atração se alia a um ativo conhecimento próprio e a uma constante vigilância na oração interior, é um grande dom de Deus pelas imensas facilidades que proporciona para levar a alma à perfeição; assemelha-se quase a uma revelação especial. Sentir, pois, com sóbria reverência, essa atração do Espírito Santo é sinal de progresso. Todavia convém lembrar que ninguém deve inquietar-se pela ausência de tal sentimento, que não é nem universal nem indispensável.
5.      Aventuro-me também a dizer que certo desejo geral, e cada vez mais crescente, de adiantar na perfeição, não deixa de ter certo valor, como sinal de progresso, e isso, apesar do que tenho dito da importância de visar determinado objetivo. Acho que não estimamos bastante esse desejo geral da perfeição. Naturalmente não nos devemos deter nele, nem nos contentar unicamente com ele. Só nos é dado para prosseguirmos.
Quando, porém, consideramos o quanto ainda se apegam ao mundo a maioria dos bons cristão e quão espantosa é a sua cegueira para com os interesses de Jesus e quão inacessíveis são aos princípios sobrenaturais, devemos confessar que esse desejo de santidade vem de Deus, que é um grande dom, e que muita coisa, de consequência superior, está nele compreendida. Deus seja louvado por toda alma que no mundo tem a fortuna de possuí-lo
É quase inconsistente com a tibieza, o que não é, em si, pequena recomendação; e embora possamos subir e ir além desse mero desejo, ainda assim ele continua a ser uma condição indispensável para atingir o que lhe fica acima.
Não devemos, entretanto, ignorar os perigos inerentes. Todo desejo sobrenatural gozado e não correspondido praticamente deixa-nos em pior estado do que nos encontrou. Para ficarmos seguros, devemos proceder sem demora, transformando o desejo em ato: oração, penitência ou ação zelosa; nunca, porém, precipitadamente ou sem tomarmos conselho.
Aí temos, pois, cinco sinais mais ou menos prováveis de progresso e nenhum está tão acima da Inteligência que não esteja ao alcance do mais fraco dentre nós. Não quero dizer, todavia, que a existência desses sinais implique que tudo esteja certo na nossa vida espiritual; mas mostra que estamos vivos, adiantando no caminho da graça. Possuir qualquer desses sinais é possuir algo de inefável, algo de mais precioso do que tudo que nos possa dar a terra de melhor e mais elevado. Repito: se temos um desses sinais, está bem; se dois, melhor; se três, melhor ainda; se quatro, ótimo; se todos os cinco, alegremo-nos sumamente.
Ora veja! Já caminhamos um pouco. Penetremos mais adiante no deserto, e, se não menos cansados, pelo menos um pouco mais animados.
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(1) A Madre de Blonay notou que aqueles a quem Deus destina a passar grande parte da vida como superiores de comunidade, não sentem pela maior parte uma atração particular, pois o que o Espírito Santo deseja formar nessas almas é um espírito universal.