terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A PAZ DA ALMA (segunda parte: a aceitação de si)

Fonte: Salve Regina

d. CURZIO NITOGLIA
[Tradução: Gederson Falcometa]
2 de abril de 2012

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 SEGUNDA PARTE
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A aceitação de si 
  •  Muitas vezes temos dificuldade de aceitar a vontade de Deus, queremos fazer aquilo que gostamos, mas algumas circunstâncias que não nos agradam se apresentam a nossa porta, e então, precisamos fazer as contas com elas. O ideal é renunciar aos nossos gostos e inclinações que são desviados pelo pecado original, para uniformizar a nossa vontade à vontade divina que é perfeitíssima em si, mesmo que nos possa aparecer incompreensível e até mesmo desagradável. Nem sempre somos bem sucedidos e algumas vezes buscamos uma escapatória. Ma isto longe de nos satisfazer nos deixa insatisfeitos, porque ficamos realmente confusos, ainda que nos pareça termos obtido aquilo que desejávamos. No curso desta segunda parte buscaremos ver todos acontecimentos com os olhos da fé e poder abraçar com amor aquilo que temos desejado evitar. Apenas assim encontraremos a verdadeira paz interior.
  • O segredo é deixar Deus agir e agir em subordinação ao seu plano. Infelizmente algumas vezes nos obstinamos a querer fazermos nós e assim impedimos a realização do projeto divino e nos metemos em um estado de desordem, de desarmonia, desfinalização que nos torna descontentes, fora de lugar e sem verdadeira paz. 
  •  Uma das condições para permitir a graça divina agir em nós e a de nós cooperarmos com essa, é a de nos aceitarmos por aquilo que somos com todas as nossas características, qualidades e os defeitos. Se nos obstinamos em não querer aceitar um defeito que temos, um acontecimento que se produziu, então perdemos a paz. Atenção! Não é o defeito ou o acontecimento negativo a causa da perda da paz, mas a nossa vontade que se obstina em não aceitá-lo livremente e com amor, já que foi querido ou ao menos permitido por Deus para o nosso bem espiritual. 
  • Deus não age no ideal, na fantasia, no sonho, mas na realidade. Em vez disso, nós queremos sempre o ideal, somos doentes de idealismo megalomaníaco e de falta de realismo. Ora, o ideal não é sempre real, antes muito raramente. A vida quotidiana normalmente é “ordinária”, não é heroica, extraordinária, fantástica, não é um sonho. É preciso vivê-la assim como é, de outra forma a transformamos em um pesadelo. 
  • Toda pessoa é criada por Deus a Sua imagem e semelhança, porém, cabe a nós vivermos como criaturas de Deus, com “a santa liberdade dos filhos de Deus” e não em ruptura com aquilo que Deus nos deu (o ser real) para vivermos em um mundo imaginário, feito de “sonhos de glória e de castelos de areia”. Por exemplo, eu sou uma pessoa que Deus criou como sou na realidade e não a pessoa que gostaria de ser. Se não me aceito e não trabalho sobre mim como sou realmente, não chego a produzir nenhum fruto real e positivo, trabalho sobre o vazio e não obtenho nada. Isto produz a insatisfação e a falta de paz ou impaciência. Deus criou e ama as pessoas reais, não ideais ou “virtuais”, ordinárias e não extraordinárias, dos homens e não dos “deuses”. Ele toma cuidado das Suas criaturas, já que é Providência, mas daquelas reais que criou e não daquelas ideais que existem apenas na nossa imaginação ferida pelo pecado original e que S. Teresa d’Ávila chamava “a louca da casa”, uma vez que é incapaz de permanecer quieta em seu lugar, mas vai sempre correndo a direita e a esquerda freneticamente, imaginando coisas que não existem, ou seja, sonhando com os olhos abertos. 
  •  Muitas vezes desperdiçamos a nossa vida a lamentarmos de não termos tal qualidade ou de ter tal defeito. Ora, tudo isso é irreal. Devemos aceitar a realidade e trabalhar, com a graça de Deus que não é negada a ninguém, para melhorar aquilo que somos se é possível ou a aceitar os nossos limites se são inelimináveis.  O que impede a graça de Deus de agir plenamente sobre a nossa alma não são os nossos limites e nem sequer as nossas misérias (se reconhecidas e confessadas com propósito de corrigi-las), mas a falta de uniformidade a vontade de Deus e a não aceitação daquilo que nos faz defeituosos, que é uma recusa prática e implícita da vontade divina. É difícil que digamos recusar por princípio o modo de agir de Deus, mas na prática é muito fácil buscar evitá-lo ou de torná-lo similar aos nossos desejos. Para aplainar toda dificuldade bastaria dizer sim com Fé e Confiança amorosa em Deus a nossa existência e, sobretudo aos lados dessa que nos repugnam. 
  • A graça de Deus age plenamente sobre nós se nós a aceitamos livremente. Qui creavit te sine te, non salvabit te sine te” (“Quem te criou sem ti não te salvará sem ti”) escrevia Santo Agostinho. Se não me aceito como sou ponho obstáculo a graça divina e lhe impeço de sanar-me e de elevar-me. Atenção, porém! Esta aceitação não é preguiça ou quietismo. O desejo de melhorarmos deve estar sempre presente em nós, mas de forma calma e realista. 
  • Viver aceitando os nossos limites com o desejo de melhorar ajudados por Deus não é contraditório, mas é a justa ótica cristã segundo a qual “a graça não destrói a natureza, mas a pressupõe e a aperfeiçoa” (Santo Tomás de Aquino). A nossa natureza real é aquela que devemos observar, aquela sobre a qual devemos trabalhar ajudados pela graça para melhorá-la na medida em que Deus o reputa possível e benéfico para a nossa alma.
  • A mudança e a conversão real e profunda começam apenas quando entendemos que somos limitados, aceitamos a realidade dos nossos defeitos e desejamos, com a ajuda de Deus, nos modificarmos e melhorarmos por quanto consista a fraqueza humana. Certo, parece fácil mas não é. O orgulho, o amor próprio, o apego a própria vontade e o medo de não ser estimado e então amado são radicados no fomes peccati que se encontra em todo filho de Adão. Apenas sob o olhar de Deus e com a luz da Fé podemos chegar, graças a virtude da humildade, a aceitar todos os nossos lados, belos, menos belos e também defeituosos, com a esperança de converter-lhes em algo melhor. Na verdade o próximo, mesmo o mais caro amigo, não pode ter aquele olhar pleno de misericórdia onipotente e auxiliadora que apenas Deus tem. Então, diante d'Ele não temos nada a temer, nada a esconder (seria tolo: Ele é onisciente). Sentindo-nos amados por Deus (“Dilectione perpetua dilexi te”) conseguiremos amar-nos e aceitar-nos com os nossos defeitos, confiantes que lhe poderemos melhor se é para o bem da nossa alma, de outro modo lhe devemos aceitar: esses não nos tiram nem o amor de Deus por nós, nem a paz do nosso espírito. Se Deus habita em nós, apesar dos nossos defeitos (apenas o pecado mortal O afasta da nossa alma), nós não devemos nos desprezar, já que junto a nós desprezaremos, implicitamente e indiretamente, também Deus. A falsa humildade, que coincide com a falta de esperança, pode ser mais perigosa que o orgulho. Vendo apenas os nossos defeitos, os lados negativos, começamos a desesperar de nós e da ajuda de Deus, mas isto leva a desesperação final, que é um pecado contra o Espírito Santo, o pecado que não pode ser perdoado apenas porque da nossa parte falta o pedido de perdão. Deus nos ama primeiro e amando-nos torna-nos bons (S. Tomás); não é a nossa “bondade”que atrai o amor de Deus. A falsa humildade no fundo coincide com o orgulho, uma vez que presente que sejam as “nossas” qualidades a tornar-nos amáveis e assim perdemos o contato com a realidade substituindo-lhe com a imaginação ou idealização.
  • O mundo moderno feito de imagens e fantasias nos propõe ou impõe, com uma propaganda sútil e solapante, sermos exteriormente belos, fortes, ricos como as divas (e “divos”) do cinema, sob pena de sermos tirados de “cena cinematográfica”. O cristianismo, ao invés, nos convida amavelmente a nos aproximarmos de Deus, dia após dia, como um viajante que escala uma montanha. Jesus não nos impõe sermos os melhores, os vencedores, os ricos, os poderosos, antes as bem-aventuranças (ou felicidade) nos ensinam o contrário: “bem aventurados os pobres de espírito ou os humildes; os mansos; aqueles que choram; os pacíficos; aqueles que desejam a santidade; os misericordiosos; os puros de coração; os perseguidos”. São estas qualidades interiores que não tem nada haver com o mito do super-homem, antes requer uma certa abjeção aceitada e amada, que leva a felicidade. É todo o contrário da filosofia deste mundo.
  • Como se vê o cristianismo não nos obriga a nos esforçarmos para aparecer ou fingirmos ser ricos, os melhores, os potentes, os afortunados, os saníssimos, sempre em plena forma e sempre vencedores. Não! Graças ao Evangelho podemos viver em santa paz, apesar dos defeitos, dos fracassos e dos xeque-mates; o único verdadeiro mal é o pecado, que nos separa de Deus, mas que se detestado é perdoado. O mundo nos obriga a fingir ser aquilo que não somos e não podemos ser, dada a nossa natureza efêmera e limitada, sujeita a corrupção do corpo e as más inclinações da alma. O Evangelho nos exorta a sermos aquilo que somos, seguros de sermos amados por Deus, apesar dos nossos limites, contanto que tenhamos a boa vontade de “fazer o bem e fugir do mal”. 
  • O amor de Deus é gratuito, não nos é devido. As nossas misérias, se combatidas, atraem a misericórdia de Deus. Santa Bernadete Soubirous disse: "o pecador é aquele que ama o pecado e quer permanecer nele”. Esta má vontade nos separa de Deus no tempo e, se si morre em tal estado, pela eternidade. Em vez disso, basta ter a boa vontade de fazer o bem e purificar-se do mal para viver na graça de Deus, unidos a ele, amados por ele e plenos de Fé, Esperança e Caridade para com ele. É o olhar amável e misericordioso de Deus que nos libera deste asilo mundano de dever, ou melhor, de aparecer os melhores a todo custo em todos os campos. Todavia o Evangelho não nos incita a inércia, mas a nos lançarmos livres para a santidade e a união com Deus. Ele a quer nos dar para que a queiramos livremente também nós, mas na paz e serenidade, sem esforços mentais, como se dependesse sobretudo de nós. Estas são as duas asas para voar em direção a Deus: a aceitação de si e a confiança na misericórdia divina, que quer e pode nos ajudar a fazer nos santos.
  • Atenção em evitar um falso modo quietista de entender a aceitação de si. Não devemos permanecer com os braços cruzados, fixos nos nossos limites. Não! Podemos e devemos nos melhorar, tender a santidade. Mas ao mesmo tempo não devemos nos fazer paralisar pelo medo de indignidade diante dos olhos de Deus. Nada de mais falso. Aceitar a si mesmo significa ver as próprias deficiências mas também as qualidades que Deus nos deu, fazer frutificar estas últimas e buscar melhorar as primeiras, sem pressa, ânsia e frenesi todo humano e naturalista. Devemos desenvolver as nossas capacidades com a ajuda de Deus e fazer tesouro das nossas misérias para atrair a Misericórdia divina (“Abissus abissum invocat”). A santidade, porém, não deve ser confundida com a perfeição exterior, afetada, farisaica, que não corresponde a quase nada de interior; não deve ser confundida nem com a impecabilidade e nem mesmo com o mito do super-homem. Santidade é a possibilidade de avançar sobre a via de Deus, de crescer espiritualmente no amor sobrenatural que pressupõe a Fé teologal, sustentada e impulsionada pela graça divina. Isto é acessível a todos, mas muitos não o querem e então, não a obtém. Não todos tem a aptidão do cientista, do escalador, do herói, mas todos tem de Deus a capacidade de fazerem-se santos. Na terceira parte veremos a aceitação do sofrimento.

d. CURZIO NITOGLIA

2 de abril de 2012