quarta-feira, 7 de março de 2012

Do bom aproveitamento da dor - Primeira Parte


Si commortul sumus et convivemus,
si sustinebimus, et conregnabimus.

Se morrermos com Cristo, com Ele viveremos,
se com Ele sofrermos, com Ele também reinaremos.
(2 Tm 2, 11)

I. Como praticar a resignação em nossos sofrimentos

A dor só produz efeitos providenciais na alma que sabe governar esta paixão e tirar proveito de seus sofrimentos. Há, na dor, um germe de vida e um germe de morte, que servirá quer ao nosso progresso, quer à nossa perdição, segundo o uso que dela fizermos.

O mal que nos atinge pode provocar a nossa cólera, ou exercitar a nossa paciência. Já dissemos que o Senhor colocou na alma, e também nos seres inferiores dotados de sensibilidade, como que um impulso possante, que se movimenta quando surge um obstáculo à aquisição de um bem que nos atrai, ou quando um mal nos ameaça. E o apetite irascível, força instintiva e cega, que não espera, para agir, o juízo da razão, afasta com violência o mal ou o obstáculo ao bem cobiçado.

Esta forma de grande utilidade existia em nossos primeiros pais antes de sua queda. Era, porém, inteiramente submissa à razão, cuja justa sentença aguardava para se exercer e cuja auxiliar dedicada e serva obediente era. Já não é assim depois do pecado; e se esforços generosos e perseverantes, se principalmente uma graça poderosa, alcançada por ardentes preces, não dominarem essa força irascível, a mínima contrariedade produzirá um movimento de impaciência ou de cólera, que é uma desordem, sempre prejudicial à alma.

Na criança, a quem a razão não ilumina e a educação ainda não formou, podemos estudar esses impulsos instintivos de impaciência e de cólera; ver o quanto são desordenados e indignos de uma criatura racional e submissa a Deus. Retirai da criança o seu brinquedo e por-se-á a chorar, a sapatear fitando avidamente os olhos no objeto que lhe foi retirado; parece sair de si mesma e passar-se toda para essa bagatela, esse nada que a cativava; se não lho devolverdes, parece-lhe que lhe retirais a vida.

Ai de nós! Seremos mais razoáveis em nossas impaciências? Quando nos é retirado algum objeto ao qual estávamos apegados; saúde, bens de fortuna, estima dos homens, não patenteiam, com freqüência, as impaciências, a cólera contida, ou a dor e, o abatimento, que nossa alma estava unida a esse objeto, sem o qual não podemos viver?

Caia doente uma pessoa que não sabe governar e moderar seus sofrimentos, e pensará constantemente na saúde perdida, representando as alegrias de que poderia ainda gozar; as satisfações que se poderia conceder, enumerando minuciosamente os inconvenientes, os dissabores, as tribulações da enfermidade. E esses cálculos vãos, essas queixas estéreis, a preocupação a tal ponto que perderá de vista coisas muito mais úteis, chegando mesmo, tão absorvida está pela dor, a negligenciar seus deveres. Se essa desordem se prolongar, será uma vida perdida, talvez uma alma desesperada para sempre.

Deus poderia sem dúvida dissipar essas idéias sombrias e fazer reinar a paz na alma, acalmando-lhe os desejos e, por conseguinte, diminuindo-lhe os sofrimentos que lhe causam as decepções. Quem nada deseja, com nada se aflige. Deus já concedeu semelhante graça a almas heróicas, a fim de recompensá-las de longos e penosos sacrifícios. As almas generosas, que combateram por largo tempo, embora sem obter um completo apaziguamento, vêem diminuir as atrações inferiores e, conseqüentemente, os sofrimentos.

Quando as aflições provêm de apegos naturais e imperfeitos, é mister renunciar sinceramente a esses apegos e agradecer ao Senhor que nos ajuda na obra tão necessária quão difícil do despojamento.

Mas nossos sofrimentos podem nada ter de repreensível. Às próprias almas perfeitas sobram ocasiões de dor; pessoas legitimamente amadas lhes serão arrebatadas, bens de grande utilidade lhes serão retirados, verdadeiras desgraças virão feri-las. E como os impulsos do coração para o ente querido que desapareceu nascem de uma afeição permitida por Deus, a dor que provocam é lícita; não deixa, todavia, de entrar, nos planos divinos, como punição ao pecado e meio de progresso.

Como então governar a dor, moderá-la e impedir que se torne nociva? Por um ato de resignação, de submissão à vontade divina, que deve substituir em nosso coração a tristeza causada pela provação. Tal ato não será sincero e perfeito se não procuramos afastar da memória, tanto quanto possível, a lembrança daquilo que nos causa pesar. Se largarmos as rédeas aos nossos pensamentos, permitindo que se entreguem livremente ao objeto querido de que estamos privados, ou ao mal que ora nos aflige, nossa dor aumentará cada vez mais e oprimirá pesadamente nosso pobre coração, que ficará como que esmagado. Cada olhar dirigido ao objeto amado excita a afeição; o atrativo sempre vivo que move o coração torna-se irresistível; a tristeza, que resulta da perda dos objetos, não sendo senão essa atração invertida, torna-se dominante e irresistível como a própria atração. Quem se presta a essa ação invasora da tristeza, quem se deixa dominar por ela, perde, por culpa própria, parte de sua liberdade; ver-se-á dentro em pouco como que acorrentado, paralisado pela dor, não dispondo, para agir, da força de outrora.

Esse entorpecimento da alma se produz naqueles que pensam demasiadamente em seus defeitos e pecados, ou antes, que neles pensam sem acrescentar, como de dever, a lembrança das bondades e das misericórdias divinas. Ocupando-se muito mais de si e pouco de Deus, traz, em constantemente presente o triste espetáculo de, suas misérias; assemelham-se às pessoas vaidosas que, tendo no rosto uma ferida, se desolam com sua fealdade; e miram-se constantemente no espelho para verificar se o mal já cicatrizou.

Será então necessário procurar um derivativo à dor, entregar-se a novos atrativos que substituam as satisfações perdidas, recorrer a consolações humanas, dando a outros objetos, ou pessoas, o lugar daqueles que nos tornam arrebatados?

Essa maneira de acalmar a dor não é por certo a melhor e vai, com freqüência, de encontro aos planos de Deus. Que se propõe, com efeito, o Senhor quando nos retira os bens deste mundo, ou nos separa dos entes queridos? Quer desprender-nos das criaturas para unir-nos mais intimamente a Si. Se, portanto, à medida que rompe os laços que nos tolhem o vôo, forjamos outras correntes, não faremos nós mesmos a nossa desgraça?

Há sempre um desígnio misericordioso da Providência nas provações que nos ferem. O saber humano, tão limitado, vê na provação um obstáculo aos bens, aos ditosos efeitos por que suspirava. Assim a enfermidade, obrigando-nos a guardar o leito, afigura-se-nos como a ruína dos belos projetos que havíamos formado. Mas os desígnios de Deus não são os nossos e Ele visa santificar-nos por meio da moléstia que, bem aceita, produzirá frutos maravilhosos. Se, ao contrário, o doente lamentar a saúde perdida, se procurar consolar-se com ilusões fomentadas cuidadosamente, se se obstinar, mesmo, a continuar uma vida ativa informando-se avidamente de tudo quanto lhe diz respeito, entregando-se a toda sorte de cálculos, de previsões, de críticas, levando, portanto, uma vida toda exterior e deixando de tirar proveito, para sua santificação, da solidão à qual o condena a enfermidade, obsta aos planos divinos. Deus pretende destruir o ardor demasiado humano desse cristão fiel, a atividade ultra-natural que lhe prejudicou as melhores obras, enquanto gozou saúde. Deus quer fazê-la morrer a tudo quanto é imperfeito e pessoal; quer que esse servo dedicado se esqueça de si mesmo e trabalhe, com uma intenção muito pura, para a glória de seu divino Mestre. Se souber renunciar com generosidade aos seus próprios gostos, aceitando amorosamente esse estado de inutilidade, e de aniquilamento, que é a, moléstia, chegará a não agir senão em virtude da vontade de Deus, tudo fazendo na medida e segundo o querer divino.

Quando a vontade do cristão está assim purificada pela resignação absoluta, tudo quanto empreender será abençoado por Deus. Então, mesmo que suas obras não aparentem êxito, seus esforços produzirão efeitos que, embora ocultos, serão ótimos; mais ainda, seus próprios sofrimentos não são menos fecundos que suas obras, e do seu leito de dor, talvez seja tão útil à Igreja quanto os operários mais ativos, os apóstolos mais zelosos.

(O Caminho que leva a Deus pelo Cônego Augusto Saudreau)

P.S: Continuará com o post: As perfeições divinas e a dor