domingo, 3 de julho de 2011

FALSOS CONCEITOS DA VIDA INTERIOR

FALSOS CONCEITOS DA VIDA INTERIOR 


Comecemos por refutar certos conceitos falsos ou incompletos.

O diletantismo espiritual

A vida interior não é uma fonte de emoções religiosas que se basta a si mesma. Muitos cristãos, ansiosos de perfeição, dão muita importância a tais gozos, como se eles mostrassem o nível ou traduzissem o desenvolvimento de nosso progresso espiritual. 

A emoção sensível - segundo eles pensam - em nossas relações com Deus, seria o testemunho, a prova de intimidade, tal como se nas relações humanas o verdadeiro afeto fosse medido pelas efusões sentimentais que pode provocar. Seguindo o paralelo entre o amor humano e o amor divino, tendo por base perspectivas, em geral, falsas, não é raro pensar-se que é impossível que haja obstáculos na procura, na busca de Deus, como se na vida não víssemos surgir a cada passo coisas temíveis e inesperadas no arroubo das paixões mais nobres e mais desinteressadas. E já que Deus está presente em todas as partes e que, ininterruptamente, estão em tudo a Beleza infinita e a Bondade ilimitada, nossa sensibilidade deveria sentir sempre a embriaguez dessa presença e a sedução de tantos esplendores. Daí o fato de muitos se afastarem, abandonarem a vida interior, porque não encontraram a exaltação sensível que se haviam prometido, ou que lhes fora prometido. 

É comum vermos novelistas e até autores de obras espirituais, apresentarem a: união com Deus corno um perene festim de bodas. A decepção que experimentam transtorna muito àqueles que, confiados, atenderam ao convite. 

A ascese e a mística falam outro idioma. Sem a renúncia não há vida interior. Digo "vida interior" porque não é preciso muita renúncia para que nos emocionemos com a simplicidade de Belém ou para que nos alegremos com os cantos e as luzes de uma missa pascoal. S. lnácio de Loiola dá duas séries de regras para o discernimento do espírito, para adorar o que, na consolação (a expressão já está consagrada) vem de Deus, e o que, pelo contrário, não é mais que ilusão. Ora, nunca se pode exprobrar a S. Inácio porque, em sua espiritualidade, tenha deixado à parte o esforço pessoal. S. Teresa de Ávila considera a mortificação como uma condição indispensável da oração. E a renúncia das "Noites" de S. João da Cruz, alcança proporções aterradoras.

Essa renúncia impõe-se tanto na oração e na sua preparação imediata como no comportamento geral da vida. Renúncia do espírito na atenção, do coração nos afetos, do corpo nos prazeres e comodidades. Não existe vida interior sem uma ascese do coração, da inteligência, dos sentidos.

O diletantismo intelectual ou sentimental nada tem a ver com a vida interior. Que as emoções religiosas constituem manifestações acessórias da vida interior, nada mais exato; porém a realidade espiritual excede-os em todos os sentidos

A pontualidade

No pólo oposto ao dos diletantes em religião que andam à cata de emoções, e para se preservarem da ilusão das consolações sensíveis, encontram-se outros que colocaram a vida interior na regulamentação dos atos cotidianos. A fidelidade em praticá-los constitui para eles a essência da vida espiritual. Considerar, antes de tudo, a religião como um dever que se tem de cumprir é, sem dúvida, algo de prudente e vantajoso. Este método evita o capricho e insiste sobre as verdades austeras do cristianismo. Mesmo sendo rígida, tal firmeza não está isenta de elevação.

Mas pode-se cumprir a lei com toda fidelidade sem por isso gozar de vida interior. O soldado que obedece ao regulamento, cumpre com seu ofício; mas isso não implica necessariamente que a execução de tais ordens enriqueça muito, digamos, nem seu coração, nem sua inteligência. A execução pontual não e a vida interior; mas pode e deve normalmente conduzir a ela. Não e raro encontrar homens abnegados, de um desprendimento fora do comum, mas que não possuem nenhuma vida interior, ao menos conscientemente. Nem por isso deveríamos desprezar ou subestimar seu espírito de sacrifício ou sua santidade. No sentido em que estamos falando, vida interior e santidade não são a mesma coisa. 

Nos vales e planícies por onde correm os rios que deságuam no Mediterrâneo, desde a Província até as costas da Síria, encontramos, a miúdo, leitos de rios obstruídos por penhascos e pedras, arrastados até ali pelas torrentes invernais, e que permanecem secos, desnudos e áridos durante quase todo o ano. Ora aqui, ora ali, uma vegetação rasteira ou uma touceira de juncos, ou ainda alguns louros-rosa atestam a presença de vestígios de umidade. Vários metros abaixo do solo, no entanto, correm lençóis de água abundante e fresca. Muitos viajantes, e até os próprios moradores do lugar nunca suspeitaram dessa efervescência interna e das reservas de fertilidade que se escondem sob aquele árido caos; da existência dessas águas que cruzam aquelas terras sem enriquecê-las e que os habitantes deixam perder-se sem aproveitá-las. 

O mesmo ocorre com as virtudes de que acabamos de falar. Uma aridez exterior recobre essa riqueza e essa efervescência que passam despercebidas aos íntimos e até aos próprios olhos dos que a possuem

O evangelho não nos mostra o reino de Deus como um conjunto de regras a seguir. Nosso Senhor compara o reino com uma semente, com uma levedura, com uma realidade que se alimenta e cresce, não por justaposição externa, mas por uma assimilação interna. A primeira imagem que apresenta aos que O interrogam sobre Sua doutrina - alguns dos quais até então não a haviam encontrado, como os judeus de Cafarnaum, Nicodemos e a Samaritana - é a da vida. Aos fariseus, aos quais amaldiçoou, jamais Jesus admoestou por suas irregularidades ou infrações ao código religioso. E até aqueles que não haviam sido corrompidos pelo orgulho farisaico, nem sempre estavam ao abrigo da aridez provocada por uma regularidade que havia mecanizado em excesso sua atividade espiritual.

Somos verdadeiramente os filhos da casa. De modo que nos portamos menos como servos, aos quais o Senhor dá Suas ordens, do que como filhos e filhas que se empenham em compreender o pensamento de Seu amantíssimo Pai. A vida interior nos leva a viver como filhos de Deus. 

No cristianismo trata-se menos de reconstruir um mosaico de acordo com o modelo do que desenvolver; graças a uma tarefa constante e quase sempre dolorosa, o germe que trazemos conosco, e deixar irradiar em nós "a luz verdadeira que ilumina a todo o homem". 

A regularidade pura, e simples, em si mesma não dá a idéia da riqueza de nossas relações de filhos com "nosso Pai que está nos céus." 

O alheamento à realidade

Outro erro na vida interior seria o alheamento às realidades mundanas. Às vezes considera-se a vida interior como se se tratasse de uma evasão das nossas ocupações e dos nossos afetos. É uma tentação sedutora, não há que negar, a de abandonar esta intrincada trama dos nossos negócios humanos em procura de uma vida angélica, livre de todos os entraves materiais. Porém nós não somos anjos, e nem temos que chegar a sê-lo, Cristo é nosso modelo e Ele não foi anjo e sim homem. Ele nos redimiu, encarnando-Se, tornando-Se um de nós e submetendo-Se a todas as nossas debilidades, exceto o pecado. 

Submergir-se em uma solidão interior ou exterior que afaste por completo dos semelhantes, dos trabalhos, isto só por uma vocação excepcional; não é o caminho normal pelo qual deve dirigir-se o conjunto dos cristãos. Para a grande maioria, a solidão - o retiro fechado, por exemplo - não deve ser mais que um recolhimento passageiro. 

Se a vida interior exigisse o afastamento de nossas ocupações e afetos, ela seria exclusivamente daqueles que se apartaram das complicações da existência, como os sacerdotes e religiosos.

Cristãos há que, às vezes, pensam dessa maneira; e por isso afastam-se da vida interior como de um terreno reservado e que jamais lhes seria franqueado. A negligência e a humildade mal entendida, produzem este resultado. Nosso medo ante o esforço acalma-se quando pensamos que, ao menos, isso não nos é exigido de vez que nossa própria vocação, ou nossa qualidade de simples cristãos é um obstáculo, ou melhor, é incompatível com as exigências da vida interior. Uma humildade mal entendida espantando-se de ver abrir-se ante nós perspectivas até então ignoradas, pode também desviar-nos da vida interior; para os outros as ambições heróicas, para nós, a modéstia dos caminhos já traçados. 

É um erro evidente. Esta situação a que nos leva e que nos fomenta a preguiça não está dentro da linha cristã. E não aproveitar totalmente das riquezas espirituais oferecidas por Deus, porque desdenham-nas os que nos cercam, não é praticar a humildade. A humildade cristã recolhe avidamente as mais altas ambições; chega até a falar a Deus chamando-O "Pai nosso"

Ao nos colocar no mundo, Deus tem um plano do qual participamos. Nosso dever não está em evitá-lo, mas em cumpri-lo. Não estamos no mundo para fugir deste plano, mas para santificá-lo. Para o homem e a mulher casados, a família, os filhos, a profissão, não são obstáculos, muito ao contrário, devem constituir o caminho que leva a Cristo. Afastar-se deste caminho - a menos que se trate de um chamado especial - não é o meio adequado para realizar o cristianismo. 

Procurar a Deus longe das condições em que Ele nos colocou é correr o risco de perdermo-nos em vãos esforços. As criaturas com as quais lidamos podem chegar a subjugar-nos; mas, por outro lado, afastando-nos delas podemos encontrar apenas o vácuo.

O homem que não ama ao seu próximo, ou cujo amor não se manifesta em serviços efetivos, bem pode crer que ama a Deus, mas corre o perigo de se deixar levar por quimeras e de esvair-se na sua própria ilusão. Os erros na vida interior são comuns. Naquele recinto recôndito, no qual só Deus pode penetrar com perfeição, não se encontra a solidez tranqüilizadora dos quadros exteriores. 

E apesar disso, para julgarmos o valor de nossa vida interior, devemos chegar a esse controle das nossas atitudes, servindo-nos das realidades de cada dia. 

Os grandes místicos nos recomendam que meçamos os mais extraordinários estados d'alma de acordo com a maior ou menor fidelidade em cumprir os deveres de cada dia; a disposição de ânimo manifestada no seu comportamento é que indica se é bom o caminho seguido.

O cumprimento fiel da vontade de Deus, eis o critério que devemos adotar para discernir o valor real de nosso interior. E este critério já nos ensinava o Mestre: "Nem todo o que diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; e sim o que faz a vontade de Meu Pai que está nos céus." (João 12,46).

(Cristãos no mundo, pelo Padre E. Roche, S.J, tradução de Jovany de Sampaio, editora Mensageiro da fé, 1948, com imprimatur.)

PS: Grifos meus.