quinta-feira, 5 de maio de 2011

As zombarias

As zombarias



Através das vozes silenciosas daquelas recordações que subiam do coração de Maria, do de Madalena, até o coração de Jesus Cristo, suprema consolação à Sua dor, ai! há outras vozes que também sobem, mas como a acre e cáustica fumarada do ódio: importa ouvi-las.

A princípio tudo é barulhento no cimo do Calvário. É a explosão do furor satisfeito e, como quer que esta última cena do drama cruel se desenrola normalmente e Deus lá em cima fica silencioso, ninguém se constrange. Povo, algozes, soldados, sacerdotes e fariseus falam, gritam, vão e vêm agitados... e zombadores.

A zombaria, irrisão; parece que todo aquele ódio acumulado deste tantos dias acaba de fundir-se enfim numa nota única, acerba e mordaz: a zombaria.

Era fitando uma última vez que aquele semblante cujos olhos os haviam dantes intimidado, e cuja boca os zurzia com verdades violentas, que os escribas e os anciãos desembestavam numa suprema zombaria.

Sobem, pois, em lufadas de ódio aquelas palavras escarninhas e cruéis, por sobre Madalena sempre abismada ao pé da Cruz, por sobre Maria que Se conserva de pé, e, qual derradeira bofetada estrondosa e vencedora, aplicam-se à face pálida do Cristo agonizante.

Na Paixão do Senhor, diz Bossuet, “faz-se um tão estranho ajuntamento de irrisões e de crueldades, que quase não se sabe qual domina, e, todavia predomina a risota”. (2º Sermão sobre a Paixão, 1º ponto.)

Qual a razão disto? Por que aquele cenário de confusão, aquela atmosfera de zombarias?

Como explicar aqueles propósitos feitos de desonrar a vítima? Muito mais: quando já não há suplícios a lhes infligir porque ela está cravada imóvel e sangrenta, e, porque já os esgotaram todos, a zombaria persiste em subir até ela. Por quê? Insisto.

Há como que um prazer malsão que lhe rememora até as suas menores palavras, - bem gravadas haviam sido, pois, - para tirar delas um suco amargo com que o abeberam.

- Vamos, tu que te gabavas de destruir o Templo de Deus para reconstruí-lo em três dias, experimenta agora descer da cruz!

E não se contentam com estas apóstrofes diretas: pode o Cristo ouvir todos os diálogos que se trocam a Seu respeito. Crudelíssima picada são do ódio os golpes indiretos: prefere a gente os que ferem em pleno rosto.

- Vede, dizem os sacerdotes ao povo, ele salvava os outros, mas não pode salvar-se a si.

Era pôr-Lhe à mostra a impostura.

- Dizia-se o Filho de Deus, fiava-se em Deus: acaso Deus se mexeu para vir livrá-lo?

E por sob aquela borrasca de ódio e de zombaria todas as cabeças revoluteiam, e até naqueles que passam e se vão embora pode Jesus perceber aqueles últimos meneios de cabeça que parecem dizer-Lhe brutalmente: Ora bem, está tudo acabado e bem acabado, tudo está feito e bem feito.

Esse contágio da zombaria dominante ganha mesmo até os algozes e os soldados de serviço que guardam os três patíbulos.

Quem era, com efeito, que induzia aqueles soldados sentados aos pés da vítima, depois de Lhe jogarem as vestes, a ainda Lhe oferecem sarcasticamente de beber, como se ela pudesse abaixar-se para molhar os lábios no vaso que Lhe apresentavam?

- Os soldados, diz São Lucas, escarneciam por sua vez, e, aproximando-se da cruz, ofereciam-lhe irrisoriamente um vinho grosseiro (Lc. 22,36).

Enfim, nada há, nem mesmo o Seu último grito de angústia, que não seja objeto de zombaria sinistra.

Quando o pobre condenado, esmagado, “derretido como cera ardente e que escorre” (Sl. 21,15), põe-se a gritar desesperadamente: “Eli, Eli, lamma sabactani”: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? – e um pouco depois: “Tenho sede!”, dizem os guardas:

- Agora está ele a chamar por Elias.

E ao soldado que se levanta e corre a embeber uma esponja em vinagre para Lhe umectar os lábios moribundos: - “Deixa, esperemos a ver se Elias vem despendurá-lo da cruz!”

Era alguns instantes antes do último suspiro; e havia ainda uma zombaria que se elevava até aos ouvidos daquele agonizante. Certo, pode-se afirmá-lo agora, naquele lúgubre quadro é mesmo a risota que excele: pergunto ainda, por quê?

Do lado dos homens que escarnecem cabeceando, a razão é clara, cruelmente clara. A zombaria é o triunfo do orgulho ferido, mas vencedor. Sob os ímpetos violentos desse orgulho, ela penetra, cinde, vai buscar no fundo da vítima os últimos resíduos da honra, para melhor estraçalhá-la e para, assim, matar mais definitivamente aquele homem aos olhos de todos. A zombaria é, pois, uma arma letal, mas que atinge mais fundo do que a morte.

Morrer achincalhado e escarnecido é morrer a toda esperança de sobrevivência na memória pública: as ressurreições parecem impossíveis para aqueles que a zombaria matou.

Compreende-se então por que os Judeus, sacerdotes e fariseus, tenham querido perseguir até às últimas vascas da morte aquele homem que tanto os humilhara e que, além disso, alardeara ressuscitar ao cabo de três dias. Era preciso que não restasse nada: e a tanto se havia chegado. Tal era o plano dos homens.

O plano de Deus é bem mais alto, conquanto o mesmo no fundo. Efetivamente, se a zombaria assim aniquila a sua vítima, talvez o Cristo tenha querido ser zombado, posto a ridículo, sinistramente troçado, para ser mais bem aniquilado. Era também o seu programa dele. Exinanivit semetipsum (Filip 2,2). Exinanite usque ad fundamentum (Sl. 136,7).

Àquele Cordeiro que carregava os pecados do mundo fazia-Se mister não somente o cutelo que abre as veias e esgaravata as entranhas, mas ainda a frecha aguda. Envenenada, do riso e do sarcasmo que investirá até contra a Sua doçura, contra o Seu sublime e divino silêncio. Melhor não podia Ele aniquilar-Se nem suprimir-Se. Quando já não resta à vítima moribunda a honra ou a piedade das recordações, haverá em verdade morte mais completa e mais extensa? Como tal, o holocausto não podia ser mais perfeito.

Esta razão já basta para tudo explicar: outras há, porém, mais tocantes para a nossa piedade.

Jesus, que via longe, sabia tudo o que teriam de sofrer mais tarde os Seus eleitos dessa zombaria tenaz, - é a arma preferida do mundo. Quis ser-lhes então um modelo consolador, que eles nunca poderiam atingir, sem dúvida, mas a que ao menos poderiam visar.

É este, com efeito, um lado da Paixão que apenas sobejas vezes temos de imitar.

Nem a todos é dado ter os cruéis estigmas dos cravos ou as marcar dos espinhos e dos flagelos: os padecimentos do martírio são o quinhão do pequeno número. A quem é, porém, que não é dado sofrer, um dia ou outro, particularmente ou em público, aos olhos dos seus, aos olhos dos estranhos, sofrer, digo, algumas humilhantes irrisões?

Deridetur justi simplicitas (Job. 12,4).

A singela confiança do Justo é, muitas vezes, objeto das zombarias; as menores são ser acoimado de exagero ou de pequice por se querer amar a Deus contrariamente a qualquer usança do mundo.

Tais derrisões são tanto mais dolorosas quanto nos virão, às vezes, daqueles que nos são próximos, e de quem esperávamos um conforto.

Noti mei quase alieni recesserunt a me, lamentava-se Job (19,15): e o profeta: factus sum opprobrium et vicinis meis valde, et timor notis (Sl. 30,12).

É então o momento de levantarmos os olhos para o semblante aniquilado do Salvador na Cruz e contemplarmos, por cima da coroa sangrenta, essa outra, não menos dolorosa, que lhe formavam em torno da cabeça inclinada todas as zombarias que ascendiam cínicas e odientas.

Por fim, e é esta uma razão mais alta ainda, se Jesus assim quis morrer sob os golpes reiterados do escárnio público, é que contava triunfar com isso abertamente do seu maior inimigo, “o do diabo”. (Bossuet, 2º Sermão sobre a Paixão) – Tende confiança, diz-nos aquela boca que procuram desonrar, e sobre a qual se escarram os últimos desprezos, tende confiança, Eu venci o mundo.

- E onde, Senhor? – Na Cruz. – E como? – Pela Cruz.

Maneira divina que me confunde: sim, vence Ele esse inimigo assumindo aquilo que ele mais teme: a humilhação. Ora, como Ele sabe, por natureza, repelir o mal e escolher o bem, diz-nos assim bastante alto que a ignomínia, quando não vem do pecado, não é um mal; que a irrisão nos não rebaixa, e que o conjunto esplendoroso dos favores do mundo não passa de miserável pobreza sendo a única riqueza o possuir Aquele que é a riqueza eterna: Deus.

O mundo clama o contrário; Jesus desprezado desmascara-o; um inimigo desmascarado é um inimigo meio vencido.

Jesus vai, porém, mais longe, e não se detém nesta primeira vitória, persegue o inimigo, e do alto da Cruz mostra-nos a sua fraqueza de fundo.

De feito, não podia Ele mostrar melhor a vaidade das forças do mundo do que dignando-Se de consentir em ser aparentemente derrubado por ele.

À feição de um gigante que se compraz às vezes em se deixar pear um instante pelos débeis laços de uma criança, porque sabe que romperá quando quiser a frágil rede daquelas teias de aranha, e que afinal de contas os golpes de uma mão tão pequena e tão vã não passam de um brinquedo de que ele zombará por seu turno, quando lhe aprouver.

Exsurgat Dominus et dissipentur inimici ejus (Sl. 67,2).

Cuido ver o sobressalto do Mestre, abatido um instante por aquela chusma de mundanos que acumularam sobre eles míseros entraves: um rebate do Senhor, e eles desaparecem para todo o sempre.

Como são, pois, pouca coisa as forças soberbas do mundo! A prova disso Pompéia no seio do Seu triunfo no Calvário mesmo.

Julga ele ter dado cabo de Jesus porque o pôs a ridículo: aguarda-lhe o último suspiro. Ora, mal se exalou esse último suspiro, através das últimas zombarias, só porque a terra se remexe um pouco e um rochedo se fende, logo a multidão dos zombadores se escoa como água: os mais ardorosos lá se vão batendo no peito, e o centurião, que também zombava talvez como os demais, cai de joelhos dizendo: “Este homem verdadeiramente era o Filho de Deus”.

Ó mundo, onde está então o teu poder? Em último golpe ainda, e adeus de ti. Este último golpe dá-lho sempre Jesus na Cruz, Ele não tem melhor campo de batalha. Acaba, assim, de triunfar do mundo servindo-se contra ele da mesma arma de que o mundo se servira para O aniquilar: o desprezo.

Não o leva em conta; aquele montão de opróbrios, todas aquelas zombarias, aquelas irrisões, Ele não faz nenhum caso delas.

Sustinuit crucem confusione contempta (Heb 12,2), diz-nos São Paulo: sofreu a Cruz desprezando o pejo. Eis aqui a arma escolhida e última que vence finalmente o mundo. Desprezamo-lo; os seus ataques, as suas blandícias, desprezemos tudo nele, ele é de todo ponto desprezível, porque é fraco, porque é falso.

Fraco, porque é o primeiro a tremer ante os desprezos, e porque abandona tudo para os não suportar.

Falso, porque não pode dar nem riqueza nem paz duradoura: todas as suas promessas são mendazes.

“Olha e passa”, non ragioniam di lor, ma guarda e passa (Dante, O Inferno, canto III.), era a fórmula do desprezo antigo. Vamos até aí; passemos altaneiros por diante dele: a altanaria cristã é o desprezo do mundo.

Quem quer que penetrou neste mistério terá compreendido aquilo a que São Paulo chama “o tesouro superior das ignomínias de Cristo” (Heb. 11,26); é aí, ó minha alma, que cumpre as tuas esperanças e as tuas miras.

Bem elevado cimo é este das culminâncias de Cristo desprezador e desprezado. Quando um homem há tomado pé sobre si mesmo, pode atingir essas culminâncias, mas lhe é forçoso palmilhar ruínas bem caras para ter esse arrojo.


(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Os últimos traços do semblante: Pai, perdoai-lhes)