sábado, 12 de março de 2011

Coroa de espinhos

Coroa de espinhos


Videte Regem... in die laetitiae

Contemplai Jesus Cristo, o Rei dos céus e da terra, no dia do Seu triunfo!

Sim; contemplai Jesus Cristo no dia do Seu triunfo! Nada falta a Sua vitória: nem a coroa, nem o cetro, nem a púrpura!

A coroa, é verdade, é um diadema de espinhos; o cetro é um arbusto frágil; a púrpura é um farrapo avermelhado pelo Seu próprio sangue!

Mas que coroa querieis que colocassem sobre a Sua cabeça?! uma coroa de ouro? Essa fica melhor na cabeça dos príncipes da terra, que sabem dourar a apostasia da fé com o ouro da realeza. Que cetro querieis que colocassem nas Suas mãos?! um cetro de ferro? Esse fica melhor nas mãos dos falsários da liberdade, que sabem governar a democracia com a vara de ferro do despotismo. Que púrpura querieis que Lhe dessem?! uma púrpura rica e brilhante?! Essa fica melhor no corpo dos ambiciosos da fortuna, dos idólatras da glória, dos adoradores de si próprios, dos súditos escravizados da vaidade universal!

Toda vida tem uma coroa: a de Jesus Cristo devia ter a Sua.

O poeta, o artista, o estadista, o general, não almejam senão uma coroa. Os cuidados todos da sua vida, as preocupações todas da sua inteligência, os sonhos todos da sua imaginação, não se reduzem senão a desejar uma coroa, mas uma coroa que lhes dê a reputação, a honra, a ventura e a glória!

Jesus Cristo devia ter também uma coroa; mas uma coroa que fosse a expressão significativa da Sua vida. Ora, que coroa mais graciosa e expressiva Lhe podia ser dada que essa de espinhos?!

Que importa que ela não seja perfeitamente redonda, e que se não adapte perfeitamente a cabeça do real monarca? Que importa que ela Lhe seja brutalmente colocada no meio de zombarias e blasfêmias?! Que importa que os espinhos Lhe penetrem a pele da fronte e saiam-Lhe pelos olhos?! Que atravessem os nervos de Seu pescoço?! Que penetrem no Seu crânio?! Que lhe rasguem as carnes como aguilhões?! Que importa que Ele trema da cabeça aos pés num suplício intolerável; que uma nuvem de sofrimento cubra Seus olhos, e Seus lábios se tornem lívidos?!

Era essa coroa que Ele desejava; a que Lhe convinha é a que tinha direito a Sua realeza.

A que Ele desejava porque era preciso que a cabeça não invejasse, por dizer, a sorte dos outros membros do corpo, que todos tinham pago um tributo de sangue. A cabeça devia pagá-lo; e derramou também a sua porção de sangue, que, se não foi abundante, foi igualmente precioso, porque foi o sangue de Seu cérebro; o sangue que tinha nutrido os mais fortes, os mais belos e os mais generosos pensamentos: os da nossa Salvação; foi o sangue com que Ele tinha alimentado o mais grandioso de todos os planos humanitários: esse que já dezenove séculos desenvolveram; que há de ter o seu Hosana imenso, e cujos triunfos parciais são bastantes para nos assegurarem o seu profetizado definitivo triunfo.

Era a que Lhe convinha porque a cabeça é a parte do corpo mais em relação com o coração. A cabeça é a sede dos músculos, nervos, veias, artérias, que se relacionam com todos os membros, de modo que a menor lesão da cabeça todos os outros membros do corpo sofrem; e era isto o que convinha ao Amor Encarnado, desejoso de em todos e em cada um dos membros de Seu corpo pagar a pena dos nossos pecados.

Convinha que este corpo, representando toda a carne da humanidade, fosse martirizado e nós pudéssemos hoje dos sofrimentos de todos e cada um dos seus membros tirar a expiração das iniqüidades cometidas por todos e cada um dos membros do nosso corpo.

Era, finalmente, a coroa, a que tinha direito a Sua realeza. Uma de ouro dar-Lhe-ia a aparência de um rei da terra; uma de louros a aparência de um simples triunfador humano; mas uma de espinhos, diz ilustre padre, anuncia-o verdadeiramente como o Rei da Humanidade, isto é, da nova humanidade que Ele veio fundar; e tão perfeitamente Lhe assenta essa coroa que os profetas extasiavam-se, vendo-a de longe.

É uma coroa de espinhos; entretanto, eles chamam-na uma coroa de pedras preciosas: posuiste Domine super caput ejus coronam de lapide precioso.

É uma coroa sem arte sem beleza; entretanto, eles chamam-na uma coroa divinamente formosa: corona speciei.

É uma coroa de loucura e dor; entretanto, eles chamam-na uma coroa de sabedoria: corona sapientiae.

Mas toda a coroa exige um cetro e uma púrpura: uma coroa de espinhos exigia um cetro irrisório e uma púrpura ridícula. Este cetro é o que Lhe convinha; esta púrpura é a que devia orná-lO.

O Rei que veio fundar o Seu Reino com os atrativos da Graça e não com a força das armas; não pelo terror, mas pela doçura; não pela violência, mas pelo amor; não pela sabedoria do mundo, mas pela loucura da Cruz; que veio levantar tudo o que é humilde, glorificar tudo que é abjeto, devia ter como cetro o mais frágil dos vegetais.

O rei do Amor não devia também, como muitas vezes os reis da terra, ter a Sua púrpura manchada pelo sangue das revoluções e das guerras; mas avermelhada pelo Seu próprio sangue.

Era preciso que os reis, e os outros chefes das nações que as não conseguem governar realmente com seus cetros de ferro; nem se fazerem adorar apesar de suas púrpuras majestáticas ou democráticas – vissem Jesus Cristo consegui-lo com um cetro de cana e uma púrpura esfarrapada.

Os Judeus, pois, supondo confundir a Jesus Cristo, não fizeram senão dar-Lhe as insígnias que convinham à Sua realeza.

Era triste então o estado da nação judaica; profunda a sua decadência política, civil e religiosa; e tão obliterados os sentimentos que, supondo aspirar a liberdade, de que o despotismo romano a tinha despojado, de fato não queria senão a escravidão.

Como todos os povos corrompidos, e que não vêm nas calamidades e misérias o justo castigo de seus pecados, o povo judeu volve-se para todos os lados a procura da salvação; mas não atina com o verdadeiro caminho por onde deve seguir.

Se tivesse correspondido a sua vocação divina, seria o povo arauto da humanidade; repudiou-a, porém, e a sua vida nacional não se torna mais que uma humilhação.

O espírito público enfraqueceu-se; as classes sociais desmoralizaram-se; o lar prostituiu-se; o próprio sacerdócio, aviltado, deixou corromper-se a religião, e profanarem-se os templos.

Então, despojado de sua autonomia, perdida a sua grandeza nacional, oprimido pela tutela romana, ele suspira por um libertador.

Mas que libertador? Um general forte e poderoso, acompanhado de exércitos, e que com a espada desembainhada, ganhando batalhas, devastando cidades, subjugando todos os outros povos, lhe restitua com a liberdade política a perdida prosperidade.

Não é esta a sorte de todos os povos que apostatam a fé e repudiam a Deus?! Não é sempre, por um justo castigo, que eles apelam para a espada; e não é sempre a espada que vinga os crimes e as iniqüidades dos povos sem Deus?!

Como, pois, os Judeus haviam de compreender a verdadeira realeza de Jesus Cristo, Rei manso, pacifico, cheio de doçura e de humildade?!

Como poderiam eles tolerar que dentre os seus compatriotas um tão obscuro tivesse a pretensão de salvar a sua pátria sem nenhum dos meios humanos: a força, a riqueza, as armas e o poder?!

Não: não podiam compreender essa realeza; por zombaria dão ao Rei verdadeiro as insígnias mais irrisórias; Deus, porém, da cegueira e maldade do povo infiel, tira a glória de Jesus Cristo, fazendo que essas insígnias sejam justamente as que melhor significam a qualidade da Sua soberania e a natureza do Seu Reino.

O libertador que eles desejavam apareceu; foi recusado pela Sua pátria; mas operou, em maior escala, em todo o universo, e por meios mais prodigiosos do que os que ela imaginava a maior de todas as revoluções da humanidade. Com uma coroa de espinhos, um cetro de cana e uma púrpura esfarrapada, Jesus Cristo tomou posse do mundo, libertou o mundo, fez-Se adorar pelo mundo. Dizei-me agora: a esse Rei deviam dar-se a coroa, o cetro e a púrpura que se dão aos outros reis?!

Não era preciso que as Suas insígnias fossem diferentes, e mesmo tão humilhantes, quanto o triunfo tinha de ser universal e assombroso?!

Não contemples, portanto, simplesmente com os olhos carnais este mistério de Jesus Cristo coroado de espinhos: contemplai antes com inefável júbilo a sua beleza e o esplendor da sua glória: videte Regem... in die laetitiae.

Extrai também deste mistério o seu profundo ensino; tirai da cabeça de Jesus Cristo, coroada de espinhos, todo o proveito para a vossa salvação.

Dizei que sois cristãos. Pois bem; sois súditos de Jesus Cristo.

Mas, se sois súditos de Jesus Cristo, o sois de um Rei coroado de espinhos; e, se o vosso Rei é assim coroado, como quereis, pergunta São Bernardo, vos coroar de rosas efêmeras, isto é, pensamentos vãos, imaginações pueris, ambições loucas, avarezas e vaidades?!

O Reino do vosso Rei nada tem de terrestre e mundano; é o Reino da humildade do espírito, da renunciação das glórias e riquezas, da paz, do amor, da caridade.

Não pode o homem ser súdito desse Rei, nem viver no Seu reino, senão renunciando-se a si próprio no que tem de grosseiro e imperfeito.

Quereis ser súditos de Jesus Cristo? Eu aplaudo deveras a nobreza de vossa aspiração; porque esse reino é de todos o mais formoso.

A humanidade só conhecia três reinos: o da material, sujeito às leis físicas, o reino animal, entregue aos simples instintos, o reino humano, apenas iluminado pela fraca luz da nossa razão.


A estes três reinos Jesus Cristo acrescentou um quarto: o reino de Deus, concebido, realizado, dirigido e perpetuamente sustentado pelo próprio Deus. Todos os homens são chamados a este Reino; mas nele nenhum homem entra senão renunciando-se a si próprio, e sacrificando ao espírito de Deus essas paixões inferiores que não o deixam compreender este profundo mistério da Coroação de espinhos, sempre, mas nunca tão oportuno como na época atual.

Qual é a grande característica da nossa época? O orgulho.

O mundo está cheio de profetas novos; todos se pretendem iluminados. Todo o espírito quer ser um Messias; e todo o livro pretende ser o berço de uma nova revolução da humanidade.

Que digo? Todo o livro?! Não há jornal de aldeia que não pretenda ser um Evangelho; e os chamados apóstolos da Idéia pupulam por toda a parte, pretendendo salvar o mundo e felicitar a humanidade, nome que, em todas as burlescas liturgias das modernas religiões sociológicas, aparece freqüentemente como o símbolo do dogma que elas criaram e único que admitem: o dogma da soberania do homem.

Todos esses novos cultos do que eles chamam Idéia não são mais que uma idolatria humanitária – o culto do eu, a apoteose do homem pelo homem; porque de fato o Deus que eles adoram é a espécie eternamente progressiva e da qual, dizem eles, cada passo é uma vitória sobre a natureza. De sorte que o Cristo, não foi criador da nova humanidade; esta tem ainda de sair do cérebro escaldado dos novos Messias!

Todos esses sistemas que se propõem à razão são irrisórios, sem dúvida: mas, donde todos eles procedem? Do orgulho da inteligência, a qual nunca foi tão fútil nem tão presunçosa como na nossa época, em que todos os países têm os seus Messias, cada cidade os seus profetas, e cada aldeia os seus apóstolos da Idéia, que eles proclamam a nova, a única, a redentora.

Quereis avaliar, devidamente toda a parvoíce desse orgulho? Vede. Sessenta séculos a humanidade tem vivido na terra acreditando no casamento, na propriedade, em Deus, no céu, no inferno, no purgatório, em tudo aquilo que por assim dizer constitui o patrimônio das suas crenças.

Pois da noite para o dia levanta-se nas colunas de qualquer jornal, ou na tribuna de qualquer esquina, um mancebo, ainda imberbe, e diz “a propriedade é um roubo; o socialismo o verdadeiro direito. O casamento não é uma instituição divina nem um sacramento; é um simples contrato sexual. Deus é uma chimera; o mundo foi feito pela matéria e a força. O céu, o inferno, o purgatório são superstições da religião. Jesus Cristo não é o homem-Deus, o redentor da humanidade, o salvador dos povos. Só há uma religião verdadeira: a ciência.”

A conclusão é lógica: a humanidade inteira durante sessenta séculos viveu nas trevas; todos os espíritos, ainda os mais transcendentes de todos os séculos, foram vítimas do erro; e o tal mancebo é que possuí a verdade. Não foi Jesus Cristo o verdadeiro Messias; quem é Ele então? Sem dúvida, o tal mancebo, que não o diz por acanhamento; mas indubitavelmente nasceu para reformar os princípios, as idéias, as crenças, as leis, o direito, as instituições e a religião de sessenta séculos.

Torno a perguntar: de onde vem tudo isso? Do orgulho. E este orgulho do mancebo, aliás, resultado dos livros e jornais em que a pobre vítima se tem nutrido, e que lhe tem proporcionado os ridículos Messias dos outros países, denota algum vislumbre de inteligência?

Não; o orgulho da inteligência, pavoroso mal da nossa época, é a maior aberração da mesma inteligência. Toda a força da inteligência está no bom senso; e o simples bom senso ensina ao homem a humildade, que não é, como se pensa, uma virtude abjeta, mas a mais alta e elevada das percepções da razão.

Coloque-se o homem – diz brilhante escritor – numa planície, onde se veja rodeado de seres animados e inanimados, racionais ou privados de razão. No meio das nuvens, das pérolas, das folhas e flores, que pensamento o preocupa, que sentimento o domina? Que é uma criatura. Sim; é essa idéia a que, em tais circunstâncias, assalta de todos nós. Temos vivido tantos anos, meses e dias: ocupamos uma posição na vida. Não sabemos, porém, o que se fez antes de nós, exceto alguns fatos que a história registra; nem o que será depois, exceto alguma revelação. O homem não deu a vida a si próprio; não sabe se será feliz ou desgraçado, grande ou miserável, são ou enfermo. Por quê? Porque é uma criatura. Podia ter nascido num dia ou noite dos milhares de anos que o precederam, noutro País; mas aquele dia em que nasceu e aquele país onde surgiu à luz lhe foram dados sem audiência sua. Por quê? Porque é uma criatura. Ainda mais: a natureza bruta lhe resiste; só com muito trabalho pode cultivar a terra e fazê-la produzir. É preciso que a terra lhe forneça os minerais e os gazes; os animais - a alimentação. Por quê? Porque não é senhor dos elementos, nem mais que simples usufrutuário do globo. De fato ele sabe que não fez o planeta; e que não pode andar sobre o pó da terra sem pagar-lhe o real tributo de uma aparente dominação. Mas porque tudo isso? Porque é uma criatura. Se é uma criatura, tem um Criador. Mas esta palavra, o Criador, como é entendida em nossa época? É um nome abstrato para significar somente que não somos eternos, é a forma masculina da expressão – criação. Nos livros de moral, ciência, filosofia, política, de certo modo fala-se no Criador; mas sem que isso importe reconhecer o Criador como um ser pessoa e vivo. Deus como pessoa é questão de que ninguém se ocupa; e até nas ciências naturais – a origem, os seus elementos moleculares, as revoluções dos corpos celestes, tudo isso é estudado e explicado numa multidão de livros com um ateísmo tão ingênuo que a palavra criatura não implica nunca a necessidade do Criador.”

Torno a perguntar: donde vem tudo isso?

Do orgulho, cujo maior castigo é este: divorciar-se completamente do bom senso; porque o mais simples bom senso, de todas as reflexões precedentes tira esta conclusão: eu sou uma criatura racional, inteligente, livre; portanto, a razão, a inteligência, vontade são também atributos do meu Criador. Eu pequenina criatura, amo ou sou capaz de amar; portanto, o meu Criador, o foco de todos os seres criados, é um oceano de amor.

O orgulho é, pois, a cegueira da inteligência; a humildade o esplendor da razão.

E não é senão para nos ensinar a humildade de espírito que a cabeça de Jesus Cristo se nos mostra hoje coroada de espinhos. Estes espinhos foram nela os castigos das nossas vaidades, das nossas vanglórias, das variadas e ridículas manifestações do nosso amor próprio, que são inumeráveis!

O orgulho é, depois do dinheiro, o maior déspota desta geração, que não tolera nenhuma superioridade intelectual, não respeita nenhuma elevação moral, não admira e aplaude senão os produtos do seu cérebro enfermo, e as obras da sua torpe imaginação.

Cada espírito sabe tudo!

Mas, se o orgulho da inteligência é a expressão da nossa época; que melhor e mais oportuno ensino que o deste Mistério? Ele é a mais formosa de todas as apoteoses da humildade.

Sois homem? Sois cristãos? Quereis verdadeiramente conquistar a liberdade do coração, a paz da alma, a sabedoria do espírito – frutos da humildade?

Contemplai aquela coroa, beijai-a; proclamai bem alto: Salve, Rei da nova humanidade!

 (A Paixão, pelo Padre Júlio Maria de Lombaerde, Cruzada da Boa Imprensa - Rio, 1937)

PS: Grifos meus.