terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Capítulo III - A VIDA DE INTIMIDADE E A GRAÇA

Nota do blogue: Para ver o índice total desta obra que transcreveremos clique AQUI.


CAPÍTULO III

A VIDA DE INTIMIDADE E A GRAÇA


(Princípios da vida de intimidade com Maria Santíssima
segundo os Santos, os Doutores e os Teólogos,
pelo Pe. Júlio Maria, editora ABC)

Já conhecemos a natureza da vida de intimidade, ou antes já contemplamos uma de suas faces. Devemos ainda examinar a outra, mais importante ainda, e cujos princípios servem de base a tudo o que veremos na continuação desta obra.

Este capítulo exige uma séria atenção e muita aplicação, porque encerra admiravelmente toda a doutrina da graça.

A primeira vista o assunto pode parecer abstrato para pessoas não familiarizadas com as questões teológicas.

Mas, refletindo um instante, retomando a leitura e sobretudo rezando, o dia tornar-se-á luminoso, sorridente, povoado de inesgotáveis, profundas e elevadas consolações e vistas, tão divinamente belas e consoladoras, que nos permitirão entrever algo das inenarráveis riquezas e misericórdias sem limites de nosso Redentor.

Consideremos pois com atenção estes princípios fundamentais, e não passemos além, sem os ter compreendido claramente.

Resumamos novamente o assunto nos dois seguintes princípios:

PRIMEIRO PRINCÍPIO:

A vida de intimidade não tem somente íntima conexão com a graça, mas pode dizer-se que ela é a própria graça.

SEGUNDO PRINCÍPIO:

Nós somos gerados por Deus Pai no mesmo ato pelo qual Ele gera o Seu Filho e, como conseqüência, somo também destinados a entrar na Sua própria vida, pela intimidade com Ele.

Ao primeiro olhar, nada mais simples que estes dois princípios e, no seu íntimo nada mais extenso e mais fecundo. Experimentemos compreendê-lo, analisando-os e aplicando-os à nossa vida.


PRIMEIRO PRINCÍPIO:

"A vida de intimidade não tem somente íntima conexão com a graça, mas pode dizer-se que ela é a própria graça".

Que é a vida de intimidade?...

É uma participação à vida do céu, que essencialmente consiste em possuir a Deus.

Ora, participar da natureza de Deus, participar de uma vida cuja essência é a posse de Deus, analogamente não é uma só e mesma coisa?...

Não podemos possuir a Deus, senão à medida que a Ele nos assemelhamos, e é sobre esta semelhança que está baseada e medida a beatitude celeste.

Ora, o que nos torna semelhantes a Deus e o que faz de nós outros deuses, para nos servimos da expressão de São Paulo, é a graça.

Semelhança e glória são pois os dois termos de nossa beatitude no céu, como graça e vida de intimidade são os dois termos de nossa divinização sobre a terra.

A graça produz a vida de intimidade. Esta produz a semelhança; e a semelhança é coroada no céu pela visão beatífica. Esforcemo-nos por compreender esta profunda e consoladora doutrina, ponderando as palavras tão breves e concisas do Apóstolo, quando disse: "Nós somos participantes da natureza divina".

A substância infinita de Deus, sendo a causa que O faz ser Deus, é evidentemente incomunicável. Nós não podemos ser Deus em coisa alguma.

A natureza de um ser é o princípio interior de seus atos, ou então, é aquilo que o faz viver deste ou daquele modo.

Não podemos participar da substância da Deus, porém podemos participar de sua natureza, isto é, podemos agir como Ele, e é por esta causa que o Apóstolo disse: Divinae consortes naturae.

Mas para agirmos como Deus, nós que somos simples e imperfeitas criaturas, é necessário sermos munidos de faculdades divinas.

E como esta participação se faz por transformação, conclui-se que a transformação que temos a efetuar é uma espécie de divinização. (Nota de rodapé: Cfr. Lepicier: "Traductus de B.V.M. - Pars. III. De relationibus B. V. M. cum homine" - Lhomeau - "Vida espiritual na escola do B. De Montfort" - "As fontes de piedade" - Hugon. "estudos theologicos" - Petitalot, "A Virgem Maria".)

Esta divinização nos estabelece na ordem sobrenatural, isto é, não somente acima de nossa natureza, mas acima de toda natureza criada; e é esta transformação que se chama graça.

Praticamente, a graça é a transformação que nos diviniza.

Uma observação importante: a graça designa um estado, nosso estado de seres divinizados.

Destes princípios teológicos há aqui muitas conclusões a deduzir. Assinalemos, pelo menos, aquelas que se referem mais diretamente ao nosso objetivo e nos conduzem à vida de intimidade.

A vida de intimidade é verdadeiramente o esplêndido e inefável florão, desabrochado sobre nossa natureza divinizada pela graça.

A graça santificante é um princípio de vida: princípio sobrenatural que nos torna radicalmente capazes de atos de glória.

Contemplar Deus face à face é mergulhar em Sua beatitude; importa, porém, notar que a graça e a glória formam uma só e mesma ordem.

Só pelo seu estado é que elas diferem entre si: - uma é o estado de germen, outra é o de desabrochamento.

Pela graça nós possuímos, desde já e radicalmente, tudo o que é necessário para contemplar Deus e para dEle gozar. (Nota de rodapé: A visão de Deus, sendo uma visão direta chama-se: "Visão intuitiva", sendo a felicidade plena, diz-se: "Visão beatífica"; é aqui a mesma coisa, mas sob outro aspecto.)

Ver a Deus e gozar de Deus é entrar em Sua ordem divina, é partilhar de Seu destino, é ultrapassar os limites de nossa natureza, para viver na intimidade com Ele.

Eis como a vida de intimidade deriva da graça e é até um dos aspectos da graça.

Eis também porque se pode teologicamente defini-la: uma participação da vida do céu que consiste em possuir a Deus.

Deste modo a vida presente é verdadeiramente o começo da vida que teremos eternamente no céu.

SEGUNDO PRINCÍPIO:

"Nós somos gerados por Deus Pai no mesmo ato pelo qual Ele gera o Seu Filho e, como conseqüência, somo também destinados a entrar na Sua própria vida, pela intimidade com Ele."

Este princípio é a base esplêndida de nossa vida de intimidade. Importa compreendê-lo em toda a sua extensão.

Comunicar sua natureza é ser pai. Deus comunica ao Verbo Sua própria substância por uma ato necessário, fazendo-nos participantes de Sua natureza divina, em virtude de um ato livre de Sua bondade.

Não é de modo algum Sua própria natureza que Ele nos dá, mas uma natureza deiforme, dotada de aptidões análogas às Suas. Em um certo sentido, nós somos gerados por Deus Pai, no ato mesmo pelo qual Ele gera Seu Filho, como o vamos mostrar.

Com efeito, esta verdade que nos põe à face das mais profundas questões teológicas necessita de uma explicação para ser compreendida por todos. Experimentemos dá-la, clara e precisamente.

A criação é obra de Deus, isto é, de cada uma das três pessoas da Santíssima Trindade. Mas Deus não Se contentou em criar. Quis elevar o criado ou, ao menos, elevar o ser mais perfeito de Sua criação, que é o homem.

Esta elevação do homem não é uma nova criação. O homem realmente permanece o mesmo que era; mas conservando-se em sua natureza própria, adquire uma sobrenatureza, pois Deus o faz participante da Sua natureza divina.

O homem é chamado a partilhar dos destinos de Deus - Graça imprevista, ponto culminante, e único a que um ser criado pode ser elevado, o qual se chama: divinização.

Nesta obra divinizadora cada uma das três pessoas divinas desempenha um papel particular.

Toda ação exterior é produzida pela Sma. Trindade, pois toda as três pessoas juntas não formam senão um ser único, com uma só e mesma substância.

Não existindo à parte, as três pessoas separadamente não podem ter exteriormente uma ação que lhes seja rigorosamente pessoal.

Entretanto, como entre a ação interior e exterior existem afinidades, pontos de comparação, é permitido atribuir a cada uma dElas tal ou tal ação junto a nós.

É assim que a teologia atribui ao Pai o poder; ao Filho, a sabedoria; o Espírito Santo, o amor.

O Pai é a fonte do ser, o princípio de todas as coisas.

O Filho, imagem e expressão do Pai, procedendo dEle, por via da inteligência, é a luz de todo homem que vem a este mundo.

O Espírito Santo, laço, termo e gozo do Pai e do Filho, procedendo dEles por via do amor é o santificador de toda alma que vive para Deus.

Compreendidas estas noções, ser-nos-á fácil compreender a extensão destas palavras: Deus dá missão ao Filho e nós nos achamos compreendidos nesta missão, como sendo o objeto da mesma.

***

Que significa a palavra missão? - ser enviado.

O Filho e o Espírito Santo são enviados, o primeiro pelo Pai, e o segundo pelo Pai e pelo Filho. Mas como são Eles enviados, se sendo Deus, Eles se acham em todo lugar, em virtude de Sua imensidade?...

A dificuldade é somente aparente, e a solução é fácil. Uma pessoa pode ser enviada a um lugar de dois modos: ou porque ela não ocupava anteriormente este lugar, ou porque ocupando-o já, aí se apresenta com um novo título.

E em nossas sociedades não se vêm situações análogas?...

O homem que é elevado ao cargo de embaixador fica sendo o mesmo homem diante do mesmo soberano; tornou-se porém outra coisa e exerce novos poderes.

Assim é que o Verbo e o Espírito Santo, que já se encontram em nós pelo Seu poder, por Sua presença e Sua essência, apresentam-Se aí, conquanto que pessoas divinas, encarregadas de uma missão.

E, notemos bem, estas missões estão contidas nos atos íntimos donde procedem as Pessoas divinas. (Nota de rodapé: Isto não quer dizer que elas sejam "necessariamente" como estes mesmos atos, porque nossa elevação à ordem sobrenatural é uma graça absolutamente gratuita. Mas ela é, com efeito, querida por Deus desde toda a eternidade. É neste sentido que ela faz parte do próprio ato de geração do Verbo)

O Pai dá missão ao Seu Filho no ato mesmo em que Ele o produz (gera-o) e nós, como conseqüência, desde esse momento, isto é, deste toda a eternidade, estamos compreendidos nesta missão, como o efeito está contido na sua causa.

E nesta causa luminosa nós éramos vistos pela Trindade, éramos amados e santificados por Ela no Verbo e no Espírito Santo.

Somos, deste modo, o objeto destas missões.

Para que o Pai pudesse enviar o Filho, para que o Pai e o Filho pudessem enviar o Espírito Santo, era preciso que existisse alguém a quem enviar, era necessário um objeto sobre o qual Eles pudessem exercer Sua ação: o primeiro para o iluminar, e o segundo para o santificar.

E este objeto somos nós mesmos. É esta a origem de nossa santificação.

Oh! como estamos a bem dizer mergulhados em Deus. Como participamos de Sua vida no mistério.
Ah! se o soubéssemos e, sobretudo, se o víssemos!

Contudo, tiremos a conclusão destas profundas e sublimes verdades.

***

A obra de uma missão é uma obra de intimidade e de amizade.

Para que Deus Se revele Trindade, são precisos seres aptos a conhecê-la.

Para que uma pessoa lhes seja enviada, é necessário que estes seres sejam destinados a entrar em Sua própria vida divina.

Mas, qual é o ser capaz de entrar na vida de Deus?

Embora feita à imagem de Deus, a nossa própria alma é incapaz disto.

Esta alma, por grande que seja, por mais que se aperfeiçõe, ficará sempre um ser criado e, por conseguinte, ficará eternamente incapaz de contemplar Deus face à face. Este glorioso poder exige faculdades divinas.

(Negritos e sublinhados meus e itálicos do autor, continua com o post: IV - Jesus Cristo)