domingo, 3 de outubro de 2010

Santa Catarina de Sena - A Vocação

(Segue o capítulo II da obra “Catarina de Sena”, de Sigrid Undset. Grifos nossos. A vida dos Santos é uma das leituras mais recomendadas à vida espiritual, visto que, como se sabe, “palavras comovem, mas exemplos arrastam”, e nos Santos é que vemos os melhores exemplos de imitação do Verbo Eterno encarnado e de Sua bendita Mãe. Aos olhos de Deus, como dizia o Padre Faber, “um Santo vale mais do que um milhão de católicos vulgares”. Daí a divulgação que ora fazemos, capítulo a capítulo, desta detalhada biografia de uma das maiores filhas da Igreja em todos os tempos, Santa Catarina de Sena. Talvez a Providência Divina esteja preparando alguma luz especial para ti na leitura destas páginas, caro amigo; afinal, o mesmo Pai Eterno disse assim à Catarina: “Eu quero que sejais Santos; tudo o que vos acontece têm essa finalidade”...)
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A VOCAÇÃO


Era costume, nas cidades italianas, uma moça com mais de doze anos não poder sair à rua sem ser acompanhada por uma mulher mais velha. Consideravam-na mais ou menos na idade de casar, e os pais tinham de começar a procurar-lhe um marido conveniente. Assim, quando Catarina chegou aos doze anos, deixou de fazer recados à mãe e de se escapar para ir visitar as mulheres casadas. Os pais e as irmãs tinham confiança em que seriam capazes de lhe arranjar um marido que trouxesse honras e benefícios para toda a família; Lapa, especialmente, sentia-se muito feliz, certa como estava de que conseguiria encontrar um homem verdadeiramente digno da sua encantadora e sensível filha mais nova, que era aliás a sua favorita.

Mas quando Lapa lhe disse que tinha chegado a altura de cuidar de si o melhor possível, arranjar o lindo cabelo da maneira mais apropriada, lavar o rosto mais vezes, e evitar tudo o que pudesse prejudicar a sua tez delicada e o alvo pescoço, ficou terrivelmente desapontada. Catarina não ficou nada entusiasmada com a idéia de se fazer bonita para agradar aos rapazes; pelo contrário, parece que se esquivava à companhia deles e fazia tudo para que não a vissem. Fugia dos próprios aprendizes e ajudantes que viviam em sua casa “como se fossem víboras”. Nunca se deixava ficar à porta da casa nem se debruçava nas janelas para ver os transeuntes e ser vista por eles.

Lapa procurou a ajuda de Bonaventura para tornar Catarina mais acessível, porque sabia da profunda amizade entre as duas irmãs; e por algum tempo houve a impressão de que Bonaventura conseguia realmente fazer com que Catarina passasse a ser um pouco mais obediente à mãe, porque começou a tomar mais cuidado com a sua apresentação. Segundo nos diz Raimundo [de Cápua], Catarina nunca fora uma beleza de espantar, mas, jovem e viva como era, delgada, de pele branca, belos olhos escuros e uma abundante cabeleira, brilhante e castanho-escuro, que os italianos sempre apreciaram tanto, deve ter sido, efetivamente, uma jovem bastante atraente.

Quaisquer que fossem as concessões que Catarina tenha feito às modas da época, sob a influência da irmã predileta, viria mais tarde a arrepender-se, com lágrimas ardentes e sofrimento sincero, [dizendo, em sua humildade] de ter assim perdido a graça de Deus entregando-se a uma vaidade pecaminosa. Quando o seu confessor Raimundo [mais tarde] lhe perguntou se alguma vez tinha desejado, ou pensado sequer, em quebrar o voto de castidade, Catarina respondeu logo que não, que nunca tivera tal pensamento. Raimundo era um padre sagaz, com longa experiência como confessor de freiras; por isso lhe perguntou também se nunca se arranjara de forma a agradar aos homens, em geral, ou a algum em particular, apesar da sua determinação de cumprir o voto; por outras palavras, se nunca namoriscado um pouco, sucumbindo à sua condição de mulher, no caminho da abnegação própria. Mas Catarina negou também isto.

Raimundo disse-lhe, então, que, se assim era, não cometera pecado ao ceder aos desejos da mãe e da irmã mais velha, ao que Catarina respondeu acusando-se de amar exageradamente a irmã, parecia-lhe mesmo que teria gostado mais de Bonaventura do que de Deus. Mesmo assim, Raimundo recusou-se a julgá-la com tanta severidade como ela se julgava a si própria: limitara-se apenas a obedecer à irmã, sem más intenções ou vaidade excessiva, e não era contra a Vontade de Deus amar Bonaventura. Mas, lamentava-se Catarina, que espécie de diretor espiritual era esse que lhe desculpava os pecados? “Oh, padre, como é que esta miserável criatura, que sem esforços ou méritos recebeu tantas graças de Deus, podia desperdiçar o tempo embelezando o seu corpo condenado a apodrecer, para tentar outras criaturas mortais?” Então, como em muitas outras ocasiões, o confessor Raimundo submetia-se à arrependida Catarina, porque ela tinha uma experiência religiosa maior do que a sua. O que ela dizia a respeito da pureza absoluta e da vontade como um todo devia ser verdadeiro.

Entretanto, deu-se uma súbita paragem nas pequenas andanças de Catarina pelas vaidades deste mundo, porque Bonaventura morreu de parto. Convenceu-se então [Catarina] que essa morte tinha sido um castigo de Deus por a irmã ter tentado afastá-la do serviço do Senhor. Mas Deus revelaria a Catarina que Bonaventura – que, fora disso, tinha sido em todos os aspectos piedosa, casta e justa – tinha permanecido pouco tempo no Purgatório antes de ser autorizada a entrar na bem-aventurança do Céu.

A morte da irmã mostrou ainda mais claramente à Catarina quão fúteis eram as vaidades do mundo; por isso se voltou com mais ardor ainda para o seu bem-amado Senhor e Lhe implorou perdão. Oh, se Ele lhe dissesse as mesmas coisas que tinha dito a Madalena: “São-te perdoados os teus pecados!”. Ela sentia que Santa Maria Madalena devia ser a sua padroeira particular e um exemplo a seguir.

A morte de Bonaventura tornou o problema do casamento de Catarina ainda mais premente para Jacopo e os filhos; para as pessoas da Idade Média, a família era o mais poderoso protetor dos direitos e bem-estar dos indivíduos. Numa época tão cheia de desassossego e perturbação, a proteção que alguém poderia esperar da comunidade – Estado ou município – era sempre incerta, no melhor dos casos. Mas um grupo, constituído por pai, filhos e genros, mantendo-se firmemente unidos e defendendo com fidelidade os interesses comuns, já prometia pelo menos uma certa segurança. Niccolo era ainda muito novo, mas, dada a morte de [sua esposa] Bonaventura, breve se casaria, entrando para outra família. Catarina tinha, portanto, o dever de obedecer aos pais e casar com um homem que viesse substituir o genro perdido.

Quando descobriram que Catarina era tão relutante em aceder aos seus desejos, cessou a admiração que nutriam pela sua sagacidade e doce timidez. Atiraram-se então à mocinha com uma fúria que nos faz acreditar que Shakespeare não exagerou quando descreveu a severidade dos Capuletos – o pai e a mãe que gritam e se insurgem contra a filha por ela não se mostrar devidamente grata quando eles lhe dizem que lhe arranjaram casamento.

Devemos recordar agora que a família de Catarina ignorava completamente o voto que ela tinha feito – Catarina nunca se atreveria a dizer-lho. Se ela tivesse manifestado o desejo de entrar para um convento, Jacopo escutá-la-ia compreensivamente, mesmo que não se sentisse muito disposto a dar-lhe desde logo o seu consentimento. Mas parece que Catarina nunca disse que queria ser freira. Para lá das fantasias que ela tinha tido em pequena – que seria ermitã ou que imitaria Santa Eufrosina fugindo de casa vestida de rapaz para ser monge – não sabemos se Catarina alguma vez imaginou ter um futuro diferente de uma vida de profunda solidão, como viria ser a vida de uma virgem desposada por Deus se continuasse a viver no meio de uma grande família, em que todos os outros membros só se preocupavam com o trabalho e os interesses do mundo.

No tempo dos Apóstolos seria esta a vida normal das mulheres cristãs que tivessem feito o voto de castidade; mas as exigências da vida prática logo levaram à fundação de conventos onde essas dedicadas mulheres podiam viver juntas sob uma certa regra. Mas uma vulgar casa de habitação da Idade Média não era o sítio mais apropriado para albergar, ano após ano, uma moça que se recusava a casar e que não pensava em trocar a sua casa por um convento.

Foi talvez Jacopo quem teve a idéia de mandar chamar um monge dominicano, velho amigo da família, para ver se convencia Catarina a ceder aos seus planos traçados. Esse monge não era outro senão Frei Tommaso della Fonte, que tinha sido criado com Catarina. Esta confessou-lhe secretamente que já havia prometido a Cristo que seria apenas Sua enquanto vivesse. Frei Tommaso limitou-se a aconselhá-la a enfrentar a severidade da família de tal maneira que eles compreendessem finalmente que ela nunca cederia. E pensou que se ela cortasse o cabelo, que era a sua maior atração, talvez eles a deixassem em paz.

Catarina aceitou este conselho como se tivesse vindo do Céu; e imediatamente pegou umas tesouras e cortou rentes as encantadoras tranças de tom castanho-escuro. Amarrou depois um véu sobre a cabeça raspada. Era contra os costumes desse tempo uma mulher solteira cobrir a cabeça, de maneira que, quando Lapa viu a filha com esse estranho toucado, logo se precipitou para ela a perguntar o que significava aquilo. A menina não ousou contar-lhe a verdade e também não queria mentir; por isso não respondeu. Lapa arrancou o véu, e quando viu a filha assim toda desfigurada, começou a soluçar de desgosto e de fúria: “Minha filha, minha filha, como pudeste fazer-me uma coisa destas?” Silenciosamente, a rapariga voltou a pôr o véu. Mas quando Jacopo e os rapazes chegaram a correr, atraídos pelos gritos e pelo choro de Lapa, e souberam o que tinha acontecido, atiraram-se furiosamente a Catarina.

Para tornar as coisas piores, Catarina tinha agora um pretendente, um jovem que os Benincasa estavam muito interessados em ter na família. Por isso a repreenderam severamente. “Oh, desgraçada, julgas que podes escapar à nossa autoridade por teres cortado o cabelo? Ele volta a crescer, e tu casarás, mesmo que isso te despedace o coração. Nunca viverás em paz e sossego enquanto não cederes e fizeres o que nós queremos”.

Tinha de haver um fim – pensavam eles – para todas essas tentativas que aquela estúpida fazia para se esconder, mesmo nos momentos mais estranhos, para rezar as suas orações e efetuar os seus exagerados atos de devoção! Deixou de poder dispor de um quarto de dormir só para si: disseram-lhe que teria de partilhar do quarto de qualquer outra pessoa da casa. Resolveu então partilhar do quarto de seu irmão Stefano, que ainda estava solteiro. De dia, enquanto Stefano trabalhava no tanque da tinturaria da cave, tinha o pequeno quarto só para ela; de noite, ele dormia como uma pedra, e não imaginava que a irmã permanecesse acordada tanto tempo em rezas e contemplações.

Lapa despediu a criada e viu que Catarina tinha bastante que fazer todo o dia em casa. Ela tinha de fazer as limpezas, preparar a comida e servir à mesa. Ainda por cima, toda a família a maltratava e censurava enquanto a faziam andar de um lado para o outro. Deviam julgar que a jovem acabaria por ver que era melhor ser dona de casa do que ser tratada como uma escrava numa grande família. Mas Catarina era ainda tão criança que era capaz de estender as suas brincadeiras às profundezas da vida espiritual.

Mais tarde, dirá a Raimundo que costumava imaginar que o pai era Nosso Senhor Jesus Cristo, a mãe era a Virgem Maria – isto ia ser muito difícil de imaginar quando Lapa tinha acessos de fúria – e os irmãos e os aprendizes eram os Apóstolos e os Discípulos. Então podia servi-los feliz e conscienciosamente, sem se cansar ou aborrecer, de tal maneira que mesmo contra a vontade, foram obrigados a admitir que ela era realmente espantosa. Esta brincadeira transformou a cozinha num santuário para Catarina, e era com alegria e delicadeza que servia à mesa, porque era o seu Amo e Senhor que ela servia.

O Espírito Santo tinha-lhe ensinado a construir dentro de si uma cela, um local de refúgio onde pudesse orar e pensar no Bem-Amado, e daqui ninguém a podia tirar, nem ninguém podia lá entrar para a perturbar. “O Reino de Deus está dentro de vós”; ela compreendia agora o significado destas palavras ditas por Aquele que é a própria verdade. Dentro de nós – aí é que o Espírito Santo lança os Seus dons para aperfeiçoarmos as nossas faculdades naturais e vencermos todos os obstáculos internos e externos. Se verdadeiramente desejarmos o Bem, o Senhor dos Céus virá dentro de nós, Aquele que disse: “Tende coragem, que Eu venci o mundo”.

Catarina confiava n’Ele e sentiu que surgira dentro dela, não construído por mãos humanas, um local de refúgio, de forma que não se devia lamentar por lhe terem tirado o pequeno quarto feito de pedra e madeira. Mais tarde, costumava aconselhar os seus discípulos, quando eles se queixavam de estarem tão sobrecarregados com os problemas do mundo que não conseguiam encontrar o sossego necessário para falarem com Deus ou para beberem da fonte que lhes dava a vida: “Construí uma cela na vossa alma, e nunca a deixeis”. Raimundo conta que não compreendera logo essas palavras da sua “mãe”, mas acrescenta: “É extraordinário ver como eu, e todos os que vivemos junto dela, compreendemos agora muito melhor [após a sua morte] as suas ações e as suas palavras do que nesse tempo, quando a tínhamos ao nosso lado”.

Um dia, estava ajoelhada, rezando profundamente, no quarto de Stefano, quando o pai entrou, a procurar qualquer coisa – ela estava rigorosamente proibida de fechar a porta à chave. Jacopo descobriu a filha ajoelhada a um canto, com um pombo branco como a neve em cima da cabeça, que, quando ele se aproximou, levantou vôo e fugiu pela janela. Mas Jacopo interrogando a filha sobre o pombo, Catarina disse que não, que não tinha visto nenhuma ave no quarto. Jacopo não disse nada, mas intimamente ficou a meditar nisto e em muitas outras coisas que já tinha observado.
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PS: Recebido por e-mail, mantenho os grifos e a colocação inicial. Agradeço a generosidade de quem me enviou, Deus lhe pague.

PS2: Ver a primeira parte aqui.