sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Da idolatria do povo cristão

Da idolatria do povo cristão

"Fillioli custodite vos a simulacris"
"Meus filhinhos, guardai-vos dos ídolos"
(I Jo 5,21)

Como as paixões se podem tornar em ídolos


Quem luta generosamente, pondo em Deus toda a esperança, alcança infalivelmente o triunfo; a luta poderá prolongar-se, mas acabará por uma vitória... Quem cede sem se incomodar, aquele cuja vida é assinalada por capitulações contínuas, será finalmente derrotado e cairá na escravidão; será dominado, tiranizado por suas más tendências, e, longe de gemer sob o jugo, aceita-o, ama-o, e se recusa a fazer esforços para dele se libertar.

O homem não deve aceitar senão a soberania de Deus; quando se curva sob o jugo divino, quando se prostra em presença do Senhor, submetendo-Lhe a vontade, prestando-Lhe os deveres de culto, ele se dignifica e se engrandece [diante do Senhor]; quem, ao contrário, se torna escravo dos sentidos, quando, seduzido pelos encantos ilusórios da criatura, se prostra diante dela, alienando sua liberdade para deixar o vício dominar-lhe o coração como senhor absoluto, ele se degrada e se avilta vergonhosamente...

Que ninguém  se admire se classificarmos de idolatria a conduta do cristão que se deixa levar pelas inclinações viciosas, sem opor resistência. O Espírito Santo, pela palavra de São Paulo, não denominou também idolatria a avareza e o gozo da vida a luta? "Seu deus, disse ele, é o ventre" (Fp. 3,19). E alhures: "O avaro que é um idólatra" (Ef. 5,5).

Uma única paixão não combatida pode tornar-se em ídolo e não nos devemos considerar ao abrigo da idolatria por não ser ainda completa a nossa sujeição. Quando começamos a ceder a uma tendência culpável, somos inclinados a iludir-nos; julgamo-nos ainda livres, proclamamos sinceramente que, tomando tal decisão e mantendo-a apesar das objeções e dos obstáculos, não fazemos mais que seguir a razão e dar prova de energia; na realidade, obedecemos a uma paixão inconfessada, e fortalecemo-la, obedendo-lhe. Se cedermos com freqüência, virá um dia em que exercerá abertamente seu domínio; será então difícil resistir-lhe.

Para descobrir o valor de uma alma e saber se ela é realmente escrava do vício, é mister verificar o que lhe desperta as concupiscências, lhe excita as faculdades e lhe delícia o coração. A paixão não combatida estende seu domínio até ao recôndito da alma; assim os olhares, as conversações, as leituras preferidas, os devaneios habituais, denotam-lhe as inclinações e revelam o falso deus que adora. Quais são os objetos que lhe atraem os pensamentos, e as recordações que lhe entretêm a memória?

Se os objetos que a alma procura de bom grado forem ilícitos; se, embora não proibidos em si mesmos, ela os prezar excessivamente, ao ponto de os desejar a todo custo, ou desprezar as leis divinas, para frui-los, essa alma é verdadeiramente idólatra.

Ficará, então, como que fascinada pelo objeto de sua adoração. Quando um espetáculo magnífico nos prende o olhar, quando uma melodia suave nos encanta os ouvidos, estes sentimentos nos impressionam fortemente e caímos em uma espécie de êxtase, que nos faz esquecer todos os seres, que deixam, por assim dizer, de existir para nós. Assim, também, a alma que, atraída por um objeto criado, que lhe parece fascinante, não se obriga a afastá-lo, será seduzida sem demora e perderá a noção de tudo; sua vida então se concentrará na contemplação do objeto que lhe prende os pensamentos, como se fosse para ela o único necessário.

Tal é o estado da alma idólatra.

Sente pela criatura o que experimentam por Deus as almas generosas que desejaram, procuraram e obtiveram o perfeito amor; almas que, comprendendo a beleza de Deus, se apaixonaram pelos Seus encantos, pensando nEle, lembrando-se dEle, aspirando a Ele. E Deus reina plenamente em seu espírito, em sua memória e em seu coração.

É preciso ainda, para conhecer o valor de uma alma, sondar-lhe as disposições das faculdades superiores, a inteligência, e sobretudo a vontade. Deus reina sobre um povo quando as autoridades que o governam fazem profissão de Lhe seguir as leis. Reina sobre uma alma quando as faculdades superiores Lhe estão submetidas, principalmente a vontade, rainha de todas as potências.

Que fim se propõe a vontade, que impulso motiva suas resoluções?
Visa a alma ao praticar este ou aquele ato a sua salvação, o agrado de Deus?

Se tal é a intenção que formula sinceramente antes de agir, embora perca por algum tempo a lembrança de Deus, os atos que pratica Lhe serão agradáveis. Entre as recordações que lhe ocupam a memória, entre as visões que lhe invadem a imaginação, entre os encantos que lhe comovem o coração e os desejos que a solicitam, pode haver algo de involuntário, que procura afastar sem o conseguir [tentações]. É mister descobrir a verdadeira intenção que motiva os atos, e a qual obedece livremente. Se em geral a alma obedece aos instintos sensuais, leva uma vida degradante e bestial; ... se obedece a motivos sobrenaturais, vive da fé.

Não é raro, infelizmente, encontrarem-se, mesmo entre cristãos, almas que só se propõem a satisfação dos instintos da concupiscência. A vontade pervertida põe então ao serviço do ídolo as demais potências da alma. Em vez de aplicar os recursos da inteligência em obras úteis, emprega-as na procura dos gozos; alimenta livremente a imaginação com idéias nascidas da paixão; entretém a memória com fatos passados, em que se nutriam os maus desejos. Vai, às vezes, até a sacrificar tudo ao ídolo: fortuna, saúde, a própria honra; mergulha na dor pais dignos de todo respeito e de todo afeto; despreza amigos os mais dedicados; não leva mais em conta nem Deus, nem os homens.

Não vemos, em torno de nós, exemplos de semelhante loucura? Famílias inteiras desprezam as leis divinas. Em muito lares Deus é destronado, enquanto vê Suas criaturas prestarem homenagem ou ao "deus dinheiro", ou ao "deu orgulho", ou ao "deus volúpia", ou aos três de uma vez. Todas as preocupações dessas pessoas voltam-se para o gozo e a vaidade, e parece que só foram postas no mundo para si mesmas e para seus ídolos.

Poupará a justiça divina esses insolentes, cuja vida equivale a uma desafio ao Criador? Qui habitat in caelis irredebit eos et Dominus subsannabit eos.

Rir-me-Ei de vós, diz aos pecadores esse Deus temível, julgais que vos esqueço porque vos deixo mergulhar nos baixos gozos de vossas paixões, mas virá o dia em que sentireis o peso de Minha coléra. Clamareis então: Senhor, Senhor, salvai-nos. E poderia responder-Vos: Eu não sou mais vosso Senhor e vosso Deus; vós preferistes ídolos vãos; onde estão hoje esses falsos deuses, objeto de vosso culto profano? Invocai-os e vede se vos poderão salvar de vossos males.

A idolatria reinou no mundo durante séculos. Engendrou males horríveis. Os costumes bárbaros dessa triste época foram-lhe, ao mesmo tempo, conseqüência e castigo: Deus, porém, não castigava tão severamente o crime de idolatria nos povos pagãos, como no Seu povo escolhido. Sua justiça exigia mais daqueles a quem mais deu. A culpa dos israelitas, caindo na idolatria, era muito superior à das outras nações, que não haviam recebido tantas luzes, nem ouvido com tanta freqüência a voz de Deus, chamando-as a seus deveres.

As nações católicas têm a plenitude da verdade; recebem com prodigalidade os recursos para viverem conforme as leis de Deus; quando deles abusam, grande é a sua responsabilidade, e terrível o castigo que as aguarda.

A França, que foi tão abundantemente favorecida pelos dons do céu, que ouviu tão amiúde os avisos e as exortações dos amigos de Deus, que viu tantos santos exemplos, e onde as obras de salvação foram tão numerosas, abusou de tais graças agravando assim a sua culpa, e sacrificando aos ídolos.

* Contam-se aí, mais que alhures, famílias voluntariamente pequenas. Não é esta uma prova de amor ao bem-estar, levado até à idolatria, e a causa dessa infame perseguição que ataca em primeiro lugar a alma da criança? Semelhante dissolução não pode deixar de atrair sobre um povo as maiores desgraças. Não é o amor idólatra às vantagens humanas que, em tantas províncias, leva os católicos, com o fim de obter favores governamentais, a elegerem para o Parlamento inimigos de Deus e da Igreja? E quantos funcionários e magistrados sacrificam seus deveres de cristãos e de juízes aos interesses pessoais. Não é isto renegar a Deus, preferindo-lhe um ídolo? (NOTA DE RODAPÉ)

São numerosos os ídolos modernos e os principais são facéis de distinguir. o que reina hoje, o que domina no coração de muita gente, o que rouba a Deus o lugar que Lhe é devido, é o amor aos prazeres sensuais, é o orgulho.

(Excertos do livro: O caminho que leva a Deus, pelo Cônego Augusto Saudreau, capelão Mor da Casa Mãe do Bom Pastor, edição de 1944)

PS: Grifos meus.
PS2: Trataremos em outro post sobre esses "dois ídolos modernos" citados no texto: o amor aos prazeres sensuais e o orgulho.