segunda-feira, 12 de abril de 2010

A última palavra divina da dor

A última palavra divina da dor


"Sabei-o, o que vosso Deus é um Deus ciumento."
 Eis o que Ele exclama no Sinai e no Calvário,
nos momentos em que mais se aproximou da humanidade;
o que Ele escreveu com trovões e raios,
e também com lágrimas e sangue,
 a fim de que as almas
o soubessem e não o pudessem olvidar.

Mas, cumpre que nos elevemos ainda mais alto, á última palavra da Religião sobre esse doloroso e impenetrável mistério da dor. Quem fez a dor? Quem lhe deu o poder de iluminar, purificar, embelezar, santificar as almas? Quem nas almas derrama a dor, como nos campos a luz e o cristalino orvalho? Quem, escultor sublime, aperfeiçoa as almas, tornando-as tão belas? E porque Deus as quer belas pela dor e pelo amor, senão porque as ama?

Ó almas, escutai esta palavra, a última, a mais elevada, a que vos consolará, porque há cruzes tão pesadas que tudo quanto tenho dito até agora não bastaria a essas almas para as suportar. Para o infinito de certas dores, é necessário o infinito das consolações.

Sabeis, pois, que Deus não é somente bom, sábio, grande e misericordioso; sabei que nos ama;  que tem por nós mais do que bondade, amor; que esse amor, infinito como Ele, tem dois traços distintos: a paixão e o ciúme, de modo que, em paralelo com esse amor, os da terra são apenas sombras, pálidas folhas mortas que caem sem vida e sem seiva.

E como poderia ser de outro modo? É um coração morto o coração de Deus? É um coração que não sabe amar? É um desses corações incompletos, sem chamas, e cujas pálidas centelhas recaem em si mesmas, sem atingir outros corações e inflamá-los? Ou é um desses corações impotentes, que amam, na verdade, e mesmo com ardor, mas que não têm o poder de realizar os seus sonhos? Sofre Ele, como nós, por amar e só ter expressões frias que traduzam os seus sentimentos? Ele é pai e mãe.

Imaginais, um pai todo poderoso, uma mãe cujo poder igualaria o seu amor? Pesastes o valor dessas palavras: um amor infinito? O amor finito já é sublime; omnia potest, diz o autor da Imitação (Liv. III, c. V); que será, pois, o amor infinito? Pesai esta expressão: infinito, isto é, inesgotável; infinito, isto é, invencível; infinito, isto é, não se fatigando jamais de dor, e não se satisfazendo jamais em receber. "Amareis o senhor vosso Deus, com todo o vosso espírito, vosso coração, vossa alma e vossas forças."

Eis o que Ele pede; e isso não é mais do que Ele dá. "Sabei-o, o que vosso Deus é um Deus ciumento." Eis o que Ele exclama no Sinai e no Calvário, nos momentos em que mais se aproximou da humanidade; o que Ele escreveu com trovões e raios, e também com lágrimas e sangue, a fim de que as almas o soubessem e não o pudessem olvidar.

Colocai-vos nessa luz; compreendereis a ação de Deus. Ele ama as almas, da beleza das quais é cioso. Não as depôs um minuto no mundo senão para que elas ali adquirissem mais uma grandeza, uma perfeição indivizível, que só a liberdade pode dar ás obras de Deus. Com que ternura Ele vela pela vida das almas, sustem as suas mãos durante esse curto porém laboroso trabalho!

Alegrias e dores, amor e sofrimentos, como proporciona Ele tudo isso unicamente de modo a torná-las belas, qual um grande artista que combina, com talento, a luz e as sombras para o encanto do olhar!

"Se Deus quer a vossa alma toda inteira, escrevia Lacordaire a um jovem que, torturado por uma depecção, não sabia vencer nem olvidar a amargura, pode causar-nos surpresa que Ele lhe tire tudo quanto a podia prender á terra?

É um Deus ciumento, diz-nos a Escritura. Essas carícias que sonhaveis, esse amor suave e legítimo que correria como um bálsamo do vosso coração, tudo quanto é inefável na pura afeição é, por Ele dado ao homem para seu passageiro deleite; porque Deus não se arreceiaria de tudo isso, se Ele quer que unicamente o ameis?" Ele acrescenta estas belas palavras:

"Quando Deus nos pune, é para que procuremos a cabeça ensanguentada do nosso Salvador, os Seus olhos, os Seus lábios, os Seus ombros sulcados pelos açoites, para neles descançarmos; para que beijemos as Suas mãos e os pés transpassados pelos pregos, por amor de nós, e curemos as Suas chagas divinas e sempre sangrentas. Ah! meu amigo, o amor não é o amor?

Vós vos lastimais, porque não sois amado, e Deus vos deu ao fundo do coração um amor casto, imenso, invencível. A Ele querieis juntar amores profanos; Deus, que não o permite talvez, vos fere. Ele vos mostra a vaidade do mundo e vos crucifica para que o ameis melhor e imiteis o crucifixo. O seu desígnio em relação a todos os homens é ser amado por eles, e toda a Sua providência é orientada nesse sentido."

Sim, tudo visa esse objetivo: os sonhos que se esvaem, as desgraças que aniquilam. Tudo está ordenado por um amor ciumento que quer, forçosamente, ser correspondido. Eis o grande sentido da dor, o sentido sublime da morte. É o ato de um amor apaixonado, que aperfeiçoa a beleza da alma, ou que rompe os elos que o impedem de se unir a elas. E a própria hora da morte acha nisso a sua explicação.

Ora Ele espera pacientemente as almas, deixando que amadureçam ao sol da dor. Só as colhe quando elas têm perdido toda a acidez, todo o amargor. Oh! quanto são belas as mortes de certos velhos! Quanto foi bom Deus em esperá-los tanto tempo!

Outras vezes, Deus se apressa em retirar do mundo certas almas que apenas ali rapidamente apareceram. São lastimadas; e Deus é acusado de crueldade. No entanto, nunca o amor foi mais delicado e mais terno. Nesses mortos jovens, cujo destino a antiguidade, por uma espécie de instinto, invejava, a Santa Escritura quer que, através das lágrimas, nós admiremos e adoremos o amor infinito que colheu um fruto amadurecido antes da idade: Consummatus in brevi explevit tempora multa; ou o amor previdente que receiou para uma planta delicada tempestade muito forte: Raptus est ne malitia mutaret sensus suos.

Diz-se: "Ela era tão pura!" Foi precisamente por isso que enlevou o coração de Deus. "Mas nós a amávamos tanto!" Sim; mas havia Alguém que a amava como vós, antes de vós; era mais do que pai, sua mãe, seu esposo, e fez por ela o que terieis feito vós mesmos, se tivesseis tido a inteligência e o poder de Deus, como tinheis o amor.

"Desgraçados de nós! escrevia ainda o autor a quem já nos referimos; esquecemos sempre que o objeto do nosso amor é amado por Outro além de nós; não nos lembramos de que Deus se chama em suas Escrituras o Deus ciumento. No nosso amor esquecemos Aquele que ama mais que todas as criaturas juntas, e que, para lhes tirar todo o direito de jamais formularem contra Ele uma queixa, quis morrer por elas, não obstante a Sua natureza eterna.

Erguei os olhos para essas regiões do amor sem limites; aí conhecereis o segredo das vossas lágrimas; aí vereis nos braços de Deus a alma pela qual chorais. Vereis as razões de fatos que vos parecem cruéis, e como a beleza sem mácula de uma alma cristã faz violência Áquele que foi o seu primeiro esposo no batismo.

Voltando os olhos para o horizonte doloroso que cada dia mais se afasta de vós, conhecereis, talvez, que houve mais penas poupadas do que júbilos roubados ao objeto da vossa afeição; e bem direis a mão incompreensível que sempre abençoa quando se estende sobre a cabeça dos Seus servos e dos Seus eleitos."

É para a Religião uma glória ter posto, não somente nos lábios do gênio, mas no coração de todos, tornando-as simples e familiares, noções tão altas e tão suaves, a um tempo, tão resplandescentes e tão puras. Que valor têm, ao lado delas, as vãs consolações da sabedoria humana?

Que argumentos pode ela oferecer para explicar a dor, para explicar particularmente a das mais belas almas, das familias mais virtuosas, daqueles que pareciam os mais dignos da felicidade, porquanto só pensavam na ventura do próximo?

Dê-mos ela, ao seu modo, a explicação desse estranho fenômeno moral, capaz de desalentar a virtude. E, principalmente, depois de nos haver revelado a fonte das lágrimas, venha ela enxugá-las, pois disso temos urgente necessidade. E o que faz a Religião. E só ela o faz...

(Excertos do livro: A Dor, do Monsenhor Bougaud)

PS: Grifos meus