domingo, 21 de março de 2010

A dor eleva a alma a Deus

Capítulo primeiro
 

Eis, pois ó minha alma, o verdadeiro segredo das coisas. A terra é por demais estreita para um ser imortal. Ela me fere e me magoa. Qual um prisioneiro, eu arrasto aqui a minha corrente. Cada dia, os meus passos mais pesados, os meus movimentos mais penosos, a minha cabeça mais inclinada ou mais trêmula, me dizem, sem que Deus tenha necessidade de intervir, que eu não sou feito para a terra.

Do homem, meu companheiro de viagem, recebo ainda melhor ensinamento. A cada instante sou por ele abandonado ou traído. Quando ao seu ombro me apoio, ele se quebra como um junco e me fere. E os melhores, aqueles aos quais chamo amigos, não são mais fiéis. A morte os arrebata, eu os fatigo com os meus defeitos, ou meus pesares os afugentam.

Quantos, cuja alma se aliava á minha, me foram violentamente arrancados pela morte! Quantos, que tinham depositado em mim a sua confiança, e que de mim se haviam aproximado, felizes, partiram desiludidos, diante de minha frieza.

Quantos outros que eu busquei, quando queria repousar em um peito amigo a minha cabeça dolorosa, e que não mais foram encontrados!

Oh! Como é o homem pouco apto aos mistérios profundos da amizade; e como verdadeiras são estas tristes palavras do sábio: “Nada é mais raro do que um verdadeiro amigo!”

E não é só a amizade que falha! Traído por ela, já torturado pelas amarguras da vida, tenta o homem achar uma consolação. “Procuremos outra coisa, diz ele, uma afeição mais terna, mais profunda, mais desinteressada, uma única, e esqueçamos tudo mais”.

Divisa, então, uma criatura que Deus expressamente destinou ao nobre encargo de amar e de consolar; muito diferente do homem, não possuindo a sua força nem a sua ambição, muito diferente, porém, por isso mesmo mais cara; não tendo ao mesmo grau nada do que o homem possui, e tendo, em compensação, tudo quanto lhe falta; uma criatura, cujo coração Deus formou com delicada arte, a quem a dor atrai, que se obstina heroicamente na dedicação, e em cuja alma Deus colocou, como um último dom que coroa todos os outros, uma espécie de intuição que lhe permite tudo compreender, a fim de que ela possa tudo consolar.

O homem vê esse ente que Deus lhe consagrou. Estremece de júbilo, e desce do altar onde lhe deu a sua mão, rejuvenescido, renovado.

Mas, infelizmente, não assiste á realização do seu sonho de felicidade. É ele o culpado? É a mulher? São ambos? Ou quis Deus que esse sonho nunca se materializasse na terra, a fim de que se ergam os olhos para o céu, onde Ele será a plena e deslumbrante realidade?

Assim, a desejada ventura a que o homem aspirava, durou pouco e mal. As promessas de felicidade não são cumpridas nos casais mais ternamente unidos. Que diríamos dos lares em que só há cinzas extintas e daqueles em que a chama jamais ardeu?

Que diríamos de outros, menos infelizes, contudo, em que brilhava a flama ardente e pura, mas onde a morte veio inexoravelmente apagá-la? Vós vos afastais da família devastada, como da amizade destruída. Lançais-vos no torvelinho dos negócios dos negócios, em uma vida ativa, ruidosa, que vos atordoa.

Mas apenas começais nesse terreno a vossa lida, a calúnia vos persegue; e, depois de conhecerdes as paixões dos homens, voltais magoado, e desiludido dessa nova tentativa em busca de aventura.

Qual um viajante que galga uma montanha, cujo cimo atinge depois de ter deixado nas veredas da encosta, dispersos, todos os seus companheiros, e que, ao olhar em torno, vê, no fundo do vale as árvores derrubadas pela tempestade; nós, chegados ao vértice da vida, olhamos em volta e nos vemos sós.

Ao longe, vislumbramos os sonhos destruídos, as amizades devastadas, os amores extintos, as generosidades amáveis que pereceram no caminho, e não mais se encontram; e, com o olhar triste e o coração angustioso, transpomos lentamente esses últimos e nevados cimos da existência, que seriam miseráveis, se Deus não se achasse no fim da nossa jornada.

E, cansados de tudo, mesmo da esperança, pois nada mais esperamos, nem mesmo os consolos da amizade, certos de que todas as taças estão vazias ou contêm uma bebida amarga, lançamos um derradeiro grito: “Meu Deus! Meu Deus!”

Pergunta-se: “Qual a razão da dor?”.
Eis a primeira: a terra se vela para deixar resplandecer o céu!

Sim, no grave e sublime ensinamento da Religião, é essa a primeira razão da dor. Feitos para Deus, nós nos prendemos demasiado á terra. Aí construímos um ninho, longe dos ventos e ao abrigo das neves, onde quereríamos adormecer na felicidade, onde desejáramos não envelhecer, onde a perfeição seria a exclusão da morte.

É precisamente nesse ninho em que olvidamos a eternidade, que Deus, de vez em quando, sacode a dor, como se agitasse um facho luminoso.

Quem definiria Deus, quando se visse forçado a isso?
Com que delicadeza proporciona Ele a dor á necessidade dela!

As mais das vezes, toca apenas em um ponto doloroso. É um sonho que se esvai, uma ilusão que se dissipa, um amigo que esquece ou um coração que se esfria. Involuntariamente, levantamos os olhos para o céu. E dizemos: “Ó meu Deus, unicamente Vós sois constante e fiel!”

Outras vezes, o golpe vibrado por Deus é mais forte. Uma fortuna se desfaz, um trono vacila. O mundo não vê mais do que a poeira que se eleva dessas ruínas; a alma golpeada vê outra coisa. Uma luz desconhecida começa a aparecer-lhe; o céu se descobre diante de seus olhos consolados e ela acha aí uma compensação aos bens terrestres que perdeu.

Ó meu Deus, dizia a rainha da Inglaterra, eu Vos agradeço a perda de três reinos, se com isso me posso tornar melhor”. Bossuet, referindo-se a essa soberana, dizia: “Ela agradece a Deus não o fato de a ter feito rainha, mas o de tê-la feito rainha infeliz”.

Se a dor é ainda maior (porquanto cair de um trono não é a mais cruel das desventuras), então a luz é, por assim dizer, infinita como a própria catástrofe.

Tal é por vezes o seu brilho que ela desperta nos lábios dos que sofrem, palavras tão belas e expansões tão puras quanto as da santidade.

“Oh! Como há luz atrás desse véu negro!”, dizia uma jovem viúva, vendo destruída, aos vinte anos, a mais pura felicidade que a alma possa sonhar. “A imaginação, acrescenta ela, não pode supor o que eu sofro: o tédio, o vácuo imenso, a obscuridade que envolve para mim a terra, outrora radiante aos meus olhos. Eu que amei a vida, só amo hoje a morte...”

Notai estas últimas expressões. São as mesmas que tão freqüentemente acodem os lábios dos sábios nos seus derradeiros dias de existência.

Rapidamente, a dor transportara essa jovem viúva, na virente juventude de seus vinte anos, aos altos píncaros de onde todas as coisas do mundo são julgadas com o desprendimento que merecem, e para galgar os quais foram, no entanto, necessários quarenta anos de esforços a santa Teresa e a santa Chantal.

Algumas vezes, os golpes se multiplicam. Ouvimos sobre a nossa cabeça o ronco da tormenta. Quem, nestes casos, descreveria as ternuras de Deus? A mãe, que apresentando o filho ao bisturi do cirurgião, o cobre de beijos, ternamente o acaricia antes, durante e depois da operação. Isso é uma fraca imagem do que se passa nas almas.

Quando a espada se crava até a guarda, há, muitas vezes, tal desprendimento de luz, e, no fundo da dor extrema, um tão delicado, inexprimível e desconhecido júbilo, que a alma, mesmo a mais afastada de Deus, reconhece a Sua mão e submissamente a beija. Quero citar um exemplo, de que pessoalmente fui testemunha.

Conheci, há alguns anos, um magistrado que, no meio de sua carreira, conseguira alcançar honras, consideração e influência. Era rico e feliz; nada lhe faltava, exceto a fé. Casado com uma senhora tão distinta quanto piedosa, pai de suas raparigas, ele as educara cristãmente, posto que não fosse cristão; aos dezoito e dezesseis anos, elas tinham, com a graça e o encanto de sua idade, o que a piedade, a modéstia e a inocência do coração juntam á beleza.

Muitas vezes eu as encontrava acompanhadas pelo magistrado. Ele revelava fisionomia nobre orgulho de um pai que se sente reviver em filhos dignos dele.

Um dia, a mais velha sentiu uma súbita e violenta dor de cabeça; uma febre tifóide se declarou, e em poucos dias ela morria, como um verdadeiro anjo. Sua irmã, que fora muito tarde afastada da cabeceira da enferma, apresentou, logo depois, os sintomas da mesma moléstia, e, pouco após, igualmente morria.

O desventurado pai encerrou-se oito dias na sua vivenda campestre, mudo, vencido pela dor, com os olhos fixos no leito em que vira desaparecer o seu último tesouro. Esses golpes foram para ele uma inefável revelação.

Que era este mundo, e que valia? Que valiam as honras, os cargos, as grandezas, a influência? Tudo isso lhe era odioso agora. Que valiam mesmo as criaturas, pois que tinha visto sucumbir suas duas filhas, tão amadas e tão puras, protegidas em vão por sua inocência?

Ele disse, então, consigo que o tremendo desgosto não podia ser o resultado do acaso, porquanto se pelo acaso o mundo fosse governado, não haveria outra solução além do desespero. Disse ainda que esses fatos não podiam provir da vontade insensível e indiferente de Deus; a um Deus semelhante Ele nunca teria ódio demasiado.

Teve a intuição de que Deus não poderia proceder assim senão por amor, de um modo que ele não compreenderia, mas que talvez compreendesse mais tarde. E a dor teve uma significação aos seus olhos...

Viveu ainda longos anos, servindo nobremente o seu país na magistratura, em que ocupou os cargos mais elevados e mais honrosos. Mas, ao mesmo tempo, bom cristão, surpreendendo a todos pela firmeza das suas esperanças e pela beleza de sua fé, e auxiliando os pobres com a distribuição do dote de suas duas filhas.

Esse magistrado morreu; e quando deixou este mundo, quando as suas jovens filhas vieram ao seu encontro, transfiguradas e radiantes, todos três compreenderam, em um enleio que não terá mais fim, porque Deus os havia separado durante um momento; e como, coroando e preservando as filhas, Ele concedia ao pai, á custa da separação de um dia, a imensa felicidade de viver durante a eternidade inteira na mesma luz e no mesmo amor.

Eis o primeiro serviço que a dor presta aos homens. Sim, minha alma, compreende-o, e tira disso o teu proveito; a primeira coisa que o Deus de bondade colocou nas garras sanguinolentas da dor, foi um feixe de luz.

(Excertos do livro: A Dor – Monsenhor Bougaud)

PS: Grifos meus